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A contemplação e a mística para o mundo laico

A necessidade da contemplação não é só de monges e religiosos. É de todos os cristãos. Um caminho que nos transforma e ilumina.

Mosaico da Igreja da Transfiguração, no Monte Tabor. Fonte: Wikimedia.

“Depois disso, tive uma visão: vi uma porta aberta no céu, e a voz que falara comigo, como uma trombeta, dizia: Sobe aqui e mostrar-te-ei o que está para acontecer depois disso.” (Ap 4,1)

O livro do Apocalipse, com sua linguagem própria marcada por imagens simbólicas, pode nos ajudar a compreender a realidade da oração contemplativa e da vida mística no mundo dos leigos. Aqueles que são chamados a viver e testemunhar sua fé na Igreja em meio às realidades temporais – do trabalho, do estudo, da política e de todas as dimensões culturais – são assim “sal da terra e luz do mundo” (Mt 5,13-16), como nos ensina o Concílio Vaticano II.

“Por vocação própria, compete aos leigos procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer ocupação e atividade terrena, e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência. São chamados por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade. Portanto, a eles compete, especialmente, iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e Redentor.” (Lumen gentium LG 4,31)

No livro do Apocalipse, tradicionalmente atribuído ao apóstolo João, vemos que o autor teve a visão de uma “porta aberta no céu”, por meio da qual Deus o convida a subir e adentrar. Paralelamente, no Evangelho segundo João, Jesus proclama: “Eu sou a porta” (Jo 10,7), revelando-se como o caminho que nos conduz à comunhão divina. Isso nos mostra que a oração contemplativa é um elevar-se das preocupações que nos ancoram às realidades terrenas, conduzindo-nos a uma comunhão íntima com Deus. E essa comunhão com Deus se dá por meio da passagem pela “porta”, que é o próprio Cristo, sendo a oração “por Cristo, com Cristo e em Cristo”. 

Subir e passar pela porta, portanto, não visa a buscar sensações, revelações extraordinárias, visões ou experiências espirituais agradáveis. Tais coisas podem ocorrer, mas são aspectos secundários, não o cerne da autêntica oração contemplativa e da vida mística. O que essencialmente define a oração contemplativa é o ato de passar pela porta, que é o próprio Cristo.

O processo interior espiritual de passar pela porta que é Cristo se dá em um caminho de conhecer, seguir, obedecer, adorar e amar a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo e, desta forma, conformar toda nossa vida à pessoa de Cristo, ao seu pensar, agir, falar e, por fim, ao seu sentir, como nos ensina São Paulo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo” (Fl 2,5).

Oração. A experiência de uma oração por Cristo, com Cristo e em Cristo – de passar pela porta – nos conduz à finalidade da oração contemplativa e da vida mística. Deus diz a João no livro do Apocalipse: “Para que te mostre as coisas que devem acontecer” (Ap 4,1). Assim, a oração contemplativa tem como finalidade a graça de olhar as realidades deste mundo de uma perspectiva elevada, isto é, com um olhar de fé, vendo as coisas como Deus as vê, sob a Sua perspectiva.

Por meio deste passar pela porta que é a oração contemplativa, o orante vai assimilando um processo de transformação do seu olhar sobre os acontecimentos e, desse modo, abrindo-se para uma mentalidade verdadeiramente evangélica, não cooptado por nenhuma forma de ideologia ou simplesmente por um olhar bondoso na perspectiva humana.

Assim, a oração contemplativa na vida de um leigo – seja pai, mãe de família ou solteiro – nos faz compreender que as realidades da família, trabalho e vida social devem ser transfiguradas em Cristo. Isso acontece por meio de uma presença que consegue irradiar, pela forma de viver, pelos atos e pelas palavras, a presença de Deus contemplada na liturgia, na leitura orante das Sagradas Escrituras e nos momentos de devoção pessoal.

Uma grande tentação que frequentemente nós, leigos, enfrentamos na nossa vida de testemunho cristão no mundo é o desejo de, com as nossas próprias forças e à nossa maneira, tentar transformar as realidades em que estamos inseridos. É, então, que devemos recordar as palavras de Jesus: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5).

Contemplação. A oração contemplativa é, assim, uma necessidade fundamental na nossa vida de fé como leigos, e não algo supérfluo reservado a uma elite cristã ou até mesmo restrito aos monges em seus mosteiros. Para compreender isso, devemos entender que a oração contemplativa não consiste necessariamente em ter visões ou manifestações espirituais extraordinárias. É, na verdade, uma oração centrada “em Cristo, por Cristo e com Cristo”.

A oração contemplativa só pode ser realmente reconhecida pelo princípio genuinamente cristão ensinado por Jesus: “São pelos frutos que se conhece uma árvore” (Lc 6,44). O fruto mais concreto de um contemplativo é a capacidade dada por Deus de ver todas as realidades deste mundo na perspectiva da fé. Consequentemente, surge a capacidade de agir no mundo a partir dessa visão, tornando-se – no meio da família, da vida estudantil, profissional, social, política e cultural – uma presença desse Deus que foi contemplado na oração, do qual nos tornamos um sinal vivo no meio do mundo.

Peçamos ajuda à Virgem Maria, aquela que é bela, doce e terna, modelo do contemplativo – como mulher, filha, esposa, mãe –, na sua vida aparentemente comum, cuidando dos afazeres da sua casa, fazendo as coisas ordinárias do seu dia a dia de uma forma extraordinária, porque feitas na fé e no amor e plenamente centradas em Cristo. Que ela nos ajude, nos tome pela mão e nos ensine o verdadeiro caminho da oração contemplativa, que nos faz nos transformar em um outro Cristo para os nossos irmãos.

Amém!

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