A necessidade de uma maior atenção e cuidado com a saúde mental das crianças, adolescentes e jovens tem sido cada vez mais verificada pelos educadores, pais, familiares e constatada também por meio de estudos realizados em diversos países. Em tempos de mudança, como os que vivemos hoje, se torna ainda mais evidente a necessidade de um processo de formação integral.
O mapeamento realizado em 2021 pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e o Instituto Ayrton Senna, que contou com a participação de 642 mil alunos no âmbito do Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) aponta que dois de cada três estudantes do 5º e 9º ano do Ensino Fundamental e 3ª série do Ensino Médio da rede estadual relatam sintomas de depressão e ansiedade.
Em dezembro de 2022, duas pesquisas realizadas pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, uma com jovens e outra com pais e cuidadores americanos, revelaram que o índice de transtornos como ansiedade e depressão entre os dois grupos são similares e estão relacionados.
As análises dos resultados das pesquisas apontam os riscos das grandes transformações socioculturais e econômicas de nosso tempo, potencializadas pela pandemia. Esse contexto em constante mudança impacta a todos – crianças, jovens e adultos – já que muitos dos modos de lidar ou viver o cotidiano não respondem mais às demandas atuais.
Vivendo em tempos de mudança. A necessidade de responder às novas demandas e desafios foi reconhecida no âmbito da legislação educacional, confirmando a educação integral como compromisso da Base Nacional Comum Curricular (2017), que propõe o desenvolvimento das competências socioemocionais como fator de proteção à saúde mental. São elas: autoconsciência, autogestão, consciência social, habilidade de relacionamento e tomada de decisão responsável.
O processo de formação integral, para ser efetivo e duradouro, deve apoiar-se em fundamentos antropológicos que permitam colocar e enfrentar questões como: Por que a autoconsciência ou autogestão são necessárias? O que a consciência social significa e por que é importante? Qual é a contribuição que o outro pode me oferecer ou eu posso oferecer a ele? Por quê? Para quê? Quem pode me ajudar a identificar critérios para tomar uma decisão responsável? Em que ela consiste?
Viver em tempos de mudanças exige descobrir ou redescobrir respostas a questões como essas que, anteriormente, poderiam parecer óbvias ou automáticas. Como ensina Hannah Arendt: “Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas, mas, de qualquer modo, julgamentos diretos. Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão”. (ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Paulo: Perspectiva, 2005).
Destinados ao encontro. Duas características fundamentais do ser humano nos ajudam a caminhar em direção à formação integral e à realização pessoal. A primeira delas, valorizada na tradição cristã, é o fato de a pessoa ser criatura, criada não de qualquer maneira, mas à imagem e semelhança de Deus. Isso significa que a pessoa vem de Deus e se dirige para Ele, para o Amor, a Verdade, o Bem, a Beleza, nas palavras de Santo Agostinho: “Fizeste-nos para Ti e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti” (SANTO AGOSTINHO. Confissões. Livro 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2017).
Tomás de Aquino nos ensina que a criação do nosso ser, do nosso existir não se dá apenas no início, mas a cada instante: a vida nos está sendo dada agora, somos gerados, não somos capazes de nos dar vida. Essa dependência original, esse pertencer ao Criador, nos sinaliza que não somos autônomos, mas que também não estamos sós: há Alguém que nos deseja, nos ama e nos acompanha em cada passo da nossa trajetória humana.
A segunda característica pode ser facilmente identificada na experiência de cada um de nós: o homem é um ser de encontro. Nós nascemos, nos desenvolvemos e nos realizamos por meio do encontro com outra(s) pessoa(s). Desde o nascimento, para existir, cada um de nós precisa ser recebido, acolhido no abraço, no olhar de alguém. Para descobrir quem sou, preciso do outro: “Está por natureza destinada a tornar-se o ‘eu’ de um ‘tu’. A pessoa fundamentalmente só não existe” (GUARDINI, R. O mundo e a pessoa. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1963)
Falta de luz e diálogo. A experiência de encontro é desejada, esperada e, quando acontece, gera alegria e realização. Porém, não é possível forçar o encontro, ele acontece por graça: quando duas pessoas aceitam o convite de passar um tempo juntas, compartilhar algo de valioso ou trocar uma experiência simples do cotidiano. Cada um pode localizar em sua história momentos significativos de encontro, como o faz um estudante universitário do curso de Música:
“Sempre me lembro dos dias em que faltava energia no meu bairro, mas houve um dia especial. Estávamos todos em casa, coisa que não é muito comum, já que ‘cada um tem sua vida pra cuidar’. Já eram nove da noite e me lembro que minha mãe estava na cozinha, meu pai e meu irmão estavam na sala; eu, no quarto e minhas duas irmãs no quarto delas. Cada um havia preparado o seu prato do jantar, como de costume. Foi quando a energia falhou e tudo ficou escuro. Pouco a pouco, cada um foi chegando na cozinha onde minha mãe estava. Logo a mesa estava cheia. Algumas velas foram colocadas e terminamos o jantar. Mas não ficou só nisso. Piadas foram contadas (acabamos por descobrir que meu irmão tinha talento para contar piadas); meus pais contaram histórias e lendas que meus avós contaram a eles (minha irmã teve muito medo e não tinha coragem de sair da mesa para ficar sozinha no escuro do quarto). Cantamos muitas músicas, como Não se vá, de Jane e Herondy. Tudo muito engraçado. Sei que a falta de energia ‘forçou’ o encontro, mas foi maravilhosa a experiência. Família é isso, tendo luz ou não. Após algum tempo, a luz voltou e tudo retornou ao ‘normal’. Não sei se as marcas que ficaram nos outros foram as mesmas que ficaram em mim, mas aguardo ansiosamente o dia em que a luz vai faltar novamente”.
Em um contexto cada vez mais individualista e hedonista, é fundamental aprender com as experiências cotidianas, reconhecer o valor do encontro: a beleza de estar diante do outro, de acolher sua necessidade e de ajudá-lo a enfrentá-la, a alegria de descobrir novas possibilidades, de construir juntos algo que valha a pena. Identificar pessoas, grupo de pessoas, comunidades que nos lembre quem somos – criados por amor e para amar e ser amados – é essencial para nossa formação e realização pessoal, de modo que possamos ter condições para enfrentar os desafios oferecidos pela realidade atual.
* Texto baseado em palestra proferida no I Seminário Escola & Família, promovido pela Pastoral da Educação e Ensino Religioso do Regional Sul 1 da CNBB, em parceria com o Vicariato Episcopal para a Educação e a Universidade da Arquidiocese de São Paulo (Santuário Nacional de Aparecida, 19/ago/2023)
Guilherme Ramalho Netto