A liturgia é um dos temas mais caros ao Papa Bento XVI. Ele dedicou-lhe muita atenção e reflexão, tanto em sua produção teológica pessoal quanto em seu Magistério Pontifício. A produção teológica de J. Ratzinger a respeito da liturgia é marcada principalmente por duas obras: A Festa da Fé (1981) e O Espírito da Liturgia: uma introdução (2000). Na coleção que reúne sua produção teológica, o volume 11 recolhe diversos artigos, conferências, apresentações e homilias sobre o tema. Na língua original, soma 757 páginas (Herder, 2008), na tradução brasileira (Ed. CNBB, 2ª edição revisada, 2019), soma 751.
O texto em que ele desenvolve seu pensamento de modo mais sistemático e completo é do ano 2000. O título da obra se assemelha muito ao do livro de um de seus autores favoritos, Romano Guardini, O Espírito da Liturgia (São Paulo: Cultor de Livros, 2018), publicado originalmente em 1918. Com isso, ele indica que pretende retomar aspectos de uma corrente do Movimento Litúrgico que não receberam a mesma atenção no caminho da liturgia ao longo do século XX. A história da liturgia e de seus principais elementos é apresentada na perspectiva da continuidade fundamental e o que se assemelha a rupturas ele demonstra serem evoluções necessárias do fundamento posto por Deus desde o ato criador do cosmos. Essa perspectiva se manifesta já na relação entre o Antigo e o Novo Testamento.
Nesse livro, o estudo dos fundamentos bíblicos da liturgia recebe atenção primorosa. Dialoga com os autores das principais pesquisas e as passa em resenha para discutir as ideias principais ou mais difundidas. Dá grande atenção ao desenvolvimento da liturgia ao longo da história da Igreja, em perspectiva de crescimento orgânico, vital, sem rupturas bruscas. Destaca-se sua exposição sobre o significado da participação ativa de todos os fiéis nas celebrações: trata-se não simplesmente de fazer ou dizer coisas, mas de tomar parte na ação fundamental, que é realizada por Cristo por meio de sua Igreja. Os fiéis não são meros espectadores, tomam realmente parte no ato de culto, suas ações exteriores são extremamente importantes. Bastaria, para compreender a importância que J. Ratzinger atribui a elas, a leitura do capítulo quarto desse livro, a respeito da forma litúrgica, no qual trata do significado espiritual do rito, do corpo com suas posições e gestos, da voz, da veste e da matéria que entra no ato de culto.
Em seu Magistério Pontifício, destacam-se duas exortações apostólicas e uma carta apostólica. Os textos maiores, as exortações apostólicas, são: Sacramentum Caritatis (SC, 2007) e Verbum Domini (VD, 2010). No primeiro, a opção por apresentar a Eucaristia a partir da fé, da celebração e da vida, assume a perspectiva mistagógica. Essa perspectiva caracteriza grande parte de suas homilias sobre temas litúrgicos. Destacam-se as proferidas por ocasião das celebrações anuais da Missa Crismal (manhã de Quinta-Feira Santa), dos Batismos celebrados na Festa do Batismo do Senhor e das Ordenações. Sua compreensão da mistagogia se encontra no magnífico número 64 dessa exortação. Ele considera que essa é a forma fundamental da formação liturgia, formar pela liturgia mais que para ela (embora valorize muito também essa modalidade). Não menos importante é a noção de culto espiritual que se encontra no número 70, que exprime como o mistério crido e celebrado se torna “princípio da vida nova” e “forma da existência cristã”.
A exortação apostólica Verbum Domini trata da Palavra de Deus de modo geral, mas dedica os números 52 a 71 à Palavra de Deus na liturgia. Entre a compreensão do significado teológico da Palavra de Deus, sua difusão pastoral e a atuação da Igreja no mundo consequente à fé, está, como a fazer conexão e transição, a Palavra na celebração. Aí se destaca a noção de sacramentalidade da Palavra (VD 56). Primeira vez que essa expressão ocorre em um documento pontifício, ocasionou muitos estudos e publicações. Em analogia (comparação que leva em conta semelhanças e diferenças) com a encarnação do Filho de Deus e com os sacramentos, ele expõe a eficácia da Palavra, que produz em nós o que significa. Destaca-se a analogia com a presença real de Cristo na Santíssima Eucaristia, pois em sua Palavra ele está realmente presente e se dirige a nós, o que tem consequências para a vida espiritual dos fiéis e para a vida pastoral da Igreja.
Por fim, a carta apostólica (motu proprio) Summorum Pontificum (2007), trata do uso da liturgia romana anterior à reforma litúrgica de 1970. Levando em conta o impulso da liturgia para a vida espiritual, para o fortalecimento da religião e da piedade do povo cristão, dá continuidade a ações de seu predecessor, São João Paulo II, que permitiram cada vez mais ampla e facilmente o uso da edição do Missal de 1962. Na introdução aos 12 artigos, demonstra que a coexistência dos dois Missais e dos dois rituais (o da forma típica reformada e o anterior, compreendido como forma extraordinária) não fere a concordância que deve haver entre as Igrejas particulares e a Igreja universal quanto à doutrina da fé, aos sinais sacramentais e aos usos universalmente aceitos. Também não põe em risco a correspondência entre a regra da oração e a regra da fé na Igreja (Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª ed. típica, n. 397). Isso porque na liturgia há crescimento e progresso, mas na continuidade, sem rupturas. Juntamente com a carta apostólica, escreve uma Carta aos Bispos no qual pede generosidade com relação aos grupos que solicitam celebrações na forma extraordinária como também prudência no acompanhamento, pois “não faltam exageros e algumas vezes aspectos sociais indevidamente vinculados à atitude dos fiéis ligados à antiga tradição latina” (Carta).
Talvez mais até do que o aspecto doutrinal do Magistério litúrgico de Bento XVI, sua forma de celebrar e de pregar durante as celebrações sejam o aspecto mais precioso de seu legado. Ele viveu o que ensinou: “A melhor catequese sobre a Eucaristia é a própria Eucaristia bem celebrada” (SC64).