A inteligência artificial vista com a sabedoria do coração

Em um tempo que corre o risco de se tornar “rico em técnica e pobre em humanidade”, o Papa Francisco, no Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2024*, nos convida a refletir sobre a inteligência artificial a partir do nosso coração

A evolução dos sistemas da chamada “inteligência artificial” […] a rápida difusão de maravilhosas invenções, cujo funcionamento e potencialidades são indecifráveis para a maior parte de nós, suscita um espanto que oscila entre entusiasmo e desorientação e põe-nos inevitavelmente diante de questões fundamentais: o que é, então, o homem, qual é a sua especificidade e qual será o futuro do Homo sapiens na era das inteligências artificiais? Como podemos permanecer plenamente humanos e orientar para o bem a mudança cultural em curso?

Antes de tudo, convém limpar o terreno das leituras catastróficas e dos seus efeitos paralisadores. Há um século, Romano Guardini, refletindo sobre a técnica e o homem, convidava a não se inveterar contra o “novo” na tentativa de “conservar um mundo belo condenado a desaparecer”. Ao mesmo tempo, porém, com veemência profética, advertia: “O nosso posto é no devir. Devemos inserir-nos nele, cada um no seu lugar (…), aderindo honestamente, mas permanecendo sensíveis, com um coração incorruptível, a tudo o que nele houver de destrutivo e não humano”. E concluía: “Trata-se – é verdade – de problemas de natureza técnica, científica e política; mas só podem ser resolvidos passando pelo homem. Deve-se formar um novo tipo humano, dotado de uma espiritualidade mais profunda, de uma nova liberdade e de uma nova interioridade” (GUARDINI, R. Cartas del Lago de Como. Navarra: EUNSA, 2013)

Neste tempo que corre o risco de ser rico em técnica e pobre em humanidade, a nossa reflexão só pode partir do coração humano. Somente dotando-nos de um olhar espiritual, apenas recuperando uma sabedoria do coração, é que poderemos ler e interpretar a novidade do nosso tempo e descobrir o caminho para uma comunicação plenamente humana. O coração, entendido biblicamente como sede da liberdade e das decisões mais importantes da vida, é símbolo de integridade e de unidade, mas evoca também os afetos, os desejos, os sonhos, e sobretudo é o lugar interior do encontro com Deus. Por isso, a sabedoria do coração é a virtude que nos permite combinar o todo com as partes, as decisões com as suas consequências, as grandezas com as fragilidades, o passado com o futuro, o eu com o nós.

Esta sabedoria do coração deixa-se encontrar por quem a busca e deixa-se ver a quem a ama; antecipa-se a quem a deseja e vai à procura de quem é digno dela (cf. Sab 6,12-16). Está com quem aceita conselho (cf. Pr 13,10), com quem tem um coração dócil, um coração que escuta (cf. 1 Re 3,9). É um dom do Espírito Santo, que permite ver as coisas com os olhos de Deus, compreender as interligações, as situações, os acontecimentos e descobrir o seu sentido. Sem essa sabedoria, a existência torna-se insípida, pois é precisamente a sabedoria que dá gosto à vida: a sua raiz latina sapere associa-a a “sabor”.

Não podemos esperar essa sabedoria das máquinas. Embora o termo inteligência artificial já tenha suplantado o termo mais correto utilizado na literatura científica de machine learning (aprendizagem automática), o próprio uso da palavra “inteligência” é falacioso. É certo que as máquinas têm uma capacidade imensamente maior do que os seres humanos de memorizar os dados e relacioná-los entre si, mas compete ao homem, e só a ele, descodificar o seu sentido. Não se trata, pois, de exigir das máquinas que pareçam humanas; mas de despertar o homem da hipnose em que cai devido ao seu delírio de onipotência, crendo-se sujeito totalmente autônomo e autorreferencial, separado de toda a ligação social e esquecido da sua condição de criatura […]

Somos chamados a crescer juntos, em humanidade e como humanidade. O desafio que temos diante de nós é realizar um salto de qualidade para estarmos à altura de uma sociedade complexa, multiétnica, pluralista, multirreligiosa e multicultural.

Trechos da Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2024.

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