A missão e o discernimento na trajetória do Papa jesuíta*

É muito mais do que uma coincidência que o primeiro papa latino-americano seja também o primeiro papa jesuíta. Não seria possível contar, de forma fidedigna, a história de nosso continente sem falar na presença jesuíta. No Papa Francisco, encontramos essa estreita imbricação entre a alma latino-americana e o espírito inaciano. Ainda que Francisco faça questão de explicitar que não se trata de um “jesuitismo” no papado, o modo de ser jesuíta é fundamental para entendê-lo.

Santo Inácio de Loyola Reprodução da Internet

Jorge Mario Bergoglio pertence a uma ordem missionária, nasceu e cresceu num continente de missão. Como papa, o mundo se torna seu campo de missão e a índole missionária molda seu comportamento como pontífice. Sua proposta eclesial não começa com mudanças estruturais, mas, sim, com “a transformação missionária da Igreja” (Evangelii gaudium, EG 19ss), “indo às periferias”, sendo “Igreja em saída”. Não se trata de um ativismo… O missionário vive, de um modo ou de outro, nas periferias materiais ou existenciais, seu modus operandi é sempre “em saída”, procurando se adequar às necessidades do outro e encontrar a melhor forma de comunicar-se com ele. A paixão que move o missionário não é de ordem celebrativa, social ou política. Seu desejo é viver com Cristo e levá-Lo aos demais.

Nesse sentido deve ser lido, por exemplo, seu sonho eclesial em Querida Amazonia (QA): “Seria triste se [os pobres] recebessem de nós um código de doutrinas ou um imperativo moral, mas não o grande anúncio salvífico, aquele grito missionário que visa ao coração e dá sentido a todo o resto […] Sem esse anúncio apaixonado, cada estrutura eclesial transformar-se-á em mais uma ONG e, assim, não responderemos ao pedido de Jesus Cristo: ‘Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura’ (Mc 16, 15)” (QA 63-64).

Numa entrevista concedida ao também jesuíta Antonio Spadaro, o Papa Francisco faz, provavelmente, a mais longa explicitação do significado da Companhia de Jesus em sua vida. Nela, declara que o discernimento é a maior ajuda que a espiritualidade inaciana deu para viver seu ministério. Em outra ocasião, disse que o discernimento é uma das grandes contribuições da Companhia de Jesus à Igreja.

Em 14 catequeses, Francisco explicita como entende o discernimento. Mesmo que implique inteligência, perícia e esforço, não é algo apenas racional. Envolve os afetos e a vontade – pois podemos até entender uma coisa e nem assim aderir a ela. Não se resume também a uma análise da situação e da busca da solução mais racional. O discernimento é a ajuda para reconhecer os sinais pelas quais o Senhor se deixa encontrar nas situações e aderir às indicações que daí nascem. Pressupõe a amizade e a intimidade com Cristo, cultivadas na oração, o olhar atento para si mesmo, para as próprias potencialidades e pecados, bem como para a realidade.

Nesta prática do discernimento, podemos encontrar as raízes de muitos traços característicos de Francisco. Quem se conhece e vive na amizade com Cristo, se sabe pecador e tem a liberdade humilde de se confessar como tal e julgar o mundo a partir de sua condição de pecador redimido. A realidade se torna o palco apaixonante da revelação do amor de Deus por nós, as surpresas e mesmo as perturbações se apresentam como novas oportunidades para compreender melhor Sua vontade. As regras e as normas não perdem a validade, mas precisam continuamente ser compreendidas à luz da intimidade com Cristo, da atenção à realidade e do amor aos que sofrem.

Também da prática do discernimento vem sua insistência no ouvir, ponto forte da sinodalidade: “Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta, ciente de que escutar é mais do que ouvir. É uma escuta recíproca, na qual cada um tem algo a aprender” (Comemoração do Cinquentenário do Sínodo dos Bispos, 17/out/2015).

*Agradecemos ao Padre Carlos Alberto Contieri, S.J., pela leitura e sugestões ao texto original

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