Por que sofremos tanto com o amor? Há séculos, as pessoas lutam pelo direito de amar livremente, se casar com quem desejam, receber amor daqueles que são importantes para elas… Ganhamos, com certeza, o direito de reconhecer o fracasso do amor, terminando os relacionamentos, denunciando o egoísmo daqueles que supostamente nos amam e assim por diante… Mas aquilo que nosso coração realmente deseja, que é nos realizarmos no amor, continua sendo difícil. Sem condenar, mas sim valorizando tanto o eros quanto o amor romântico, Bento XVI, nos trechos da Deus caritas est selecionados a seguir, nos mostra o caminho para a plena realização do amor.

O termo “amor” tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes […] Porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam. (Deus caritas est, DCE 2).
“Eros” e “agape”. Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade, mas, de certa forma, impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros […] Segundo Nietzsche, o Cristianismo teria dado veneno a beber ao eros [,,,] Com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida?
Mas, será mesmo assim? O Cristianismo destruiu verdadeiramente o eros?
Entre o amor e o Divino existe uma relação: o amor promete o infinito, a eternidade – uma realidade maior e totalmente diferente do dia a dia da nossa existência [… mas] o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição do eros, não é o seu “envenenamento”, mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza […] Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o espírito e consequentemente considera a matéria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente a sua grandeza […].
Ao longo do Cântico dos Cânticos, encontram-se duas palavras distintas para designar o “amor”. Primeiro, aparece a palavra dodim, um plural que exprime o amor ainda inseguro, em uma situação de procura indeterminada. Depois, esta palavra é substituída por ahabà, que, na versão grega do Antigo Testamento, é traduzida pelo termo de som semelhante agape […] Este vocábulo exprime a experiência do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando, assim, o caráter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o.
Faz parte da evolução do amor para níveis mais altos, para as suas íntimas purificações, que ele procure agora o caráter definitivo, e isto em um duplo sentido: da exclusividade – “apenas esta única pessoa” – e de ser “para sempre” […] O amor visa à eternidade. Sim, o amor é “êxtase”, não no sentido de um instante de inebriamento, mas como caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus […]
Eros e agape nunca se deixam separar completamente um do outro. Quanto mais encontrarem a justa unidade, embora em distintas dimensões, na única realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral. Embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente — fascinação pela grande promessa de felicidade — depois, à medida que se aproxima do outro, far-se-á cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais dele, doar-se-á e desejará “existir para” o outro. Assim, se insere nele o momento da agape; caso contrário, o eros decai e perde mesmo a sua própria natureza. Por outro lado, o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom […] Deve ele mesmo beber incessantemente da fonte primeira e originária que é Jesus Cristo, de cujo coração trespassado brota o amor de Deus (cf. Jo 19,34).
(DCE 3-7)
O amor humano a partir do amor de Deus. Deus é absolutamente a fonte originária de todo o ser; mas este princípio criador de todas as coisas — o Logos, a razão primordial — é, ao mesmo tempo, um amante com toda a paixão de um verdadeiro amor […] Existe uma unificação do homem com Deus – o sonho originário do homem –, mas esta unificação não é confundir-se, um afundar no oceano anônimo do Divino; é unidade que cria amor, na qual ambos – Deus e o homem – permanecem eles mesmos, mas tornando-se plenamente uma coisa só […].
O olhar fixo no lado trespassado de Cristo, de que fala João (cf. 19,37), compreende o que serviu de ponto de partida a esta carta encíclica: “Deus é amor” (1 Jo 4,8). É lá que esta verdade pode ser contemplada […] A partir daquele olhar, o cristão encontra o caminho do seu viver e amar.
Jesus deu a este ato de oferta uma presença duradoura por meio da instituição da Eucaristia durante a Última Ceia […] A Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus […] O que era um estar na presença de Deus torna-se agora, por meio da participação na doação de Jesus, comunhão no seu corpo e sangue, torna-se união.
A “mística” do Sacramento tem um caráter social, porque, na comunhão sacramental, eu fico unido ao Senhor como todos os demais comungantes […] Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou tornarão Seus […] O “mandamento” do amor só se torna possível porque não é mera exigência: o amor pode ser “mandado”, porque antes nos é dado […].
Na liturgia da Igreja, na sua oração, na comunidade viva dos crentes, nós experimentamos o amor de Deus, sentimos a sua presença e aprendemos deste modo também a reconhecê-la na nossa vida cotidiana. Ele amou-nos primeiro, e continua a ser o primeiro a amar-nos; por isso, também nós podemos responder com o amor. Deus não nos ordena um sentimento que não possamos suscitar em nós próprios. Ele ama-nos, faz-nos ver e experimentar o Seu amor, e desta “antecipação” de Deus pode, como resposta, despontar também em nós o amor.
(DCE 10-17)



