A Páscoa não é apenas uma festa celebrada em um momento do ano. É a celebração de um caminho que fazemos ao longo de toda a nossa vida cristã, à medida que nos conformamos cada vez mais ao plano de amor que Deus tem para nós.
A Páscoa é ponto de chegada de um longo caminho de preparação e de espera, início de um itinerário no seguimento de Cristo que durará a vida inteira, de conversão em conversão a Ele. “Fui crucificado junto com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Esta vida na carne vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2, 19-20). “Ó Deus, por vosso filho unigênito vencedor da morte, abristes hoje para nós as portas da eternidade. Concedei que, celebrando a Ressurreição do Senhor, renovados pelo vosso Espírito, ressuscitemos na luz da vida nova” (Oração do dia de Páscoa).
A vida do batizado em Cristo é um processo de morte e ressurreição que tem, no próprio ressuscitado e na celebração memorial do evento pascal, seu início e nascente, no inesgotável dinamismo de uma existência sempre nova, na medida em que se abre à ação do Espírito.
O itinerário da pessoa a caminho evoca um movimento espiritual para frente que se realiza somente enquanto somos impulsionados pelo Espírito Santo: “Todos os que são movidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus” (Rm 8, 14-17), isto é, passaram da escravidão à liberdade de filhos(as); do agir por obrigação e medo, ao agir por amor. Todos os aspectos da vida de quem se deixa guiar pelo Espírito constituem a vida espiritual: trabalho, descanso, atividade profissional, vida familiar, atividade econômica e política, dores e alegrias etc., se vivenciados sob a ação e os critérios do Espírito e do Evangelho. Assim, todas as nossas atividades formam a nossa vida espiritual, não apenas a oração, a liturgia etc. […] É um caminho com etapas e passagens sucessivas, que precisa de repetidas “páscoas”, aceitando morrer com Cristo a tudo o que nos impede de progredir no conformar-se a Ele, morrer ao “homem velho”, para crescer na livre obediência ao seu Espírito (cf. Rm 8, 18-25: com a criação sofremos os gemidos do parto… na perseverança).
A experiência espiritual é experiência de vida que se identifica progressivamente com a vida de Jesus. Pelo batismo, nos foi doada a sua mesma vida de filho, de liberdade e de amor. Usando a linguagem simbólica de Paulo, nós fomos “enxertados” em Cristo, que é a “oliveira santa”, recebendo a sua mesma seiva vital (cf. Rm 11, 17-24); fomos “transplantados” Nele, como órgãos vivos do seu próprio corpo (cf. 1Cor 12, 12-13). Ser cristãos não é simplesmente seguir os ensinamentos de Jesus, sua doutrina, mas partilhar, por graça, da sua própria vida divina, viver uma constante relação vital com Ele! A experiência da Páscoa de Jesus com o Batismo funda uma “ética da relação” pessoal com Ele, não simplesmente uma “ética dos deveres”. Os comportamentos, aí, nascem da relação pessoal.
Temos toda a responsabilidade para que o nosso solo ofereça condições favoráveis para o crescimento da semente. O divino semeador é generoso para com todos, mas a sorte da semente depende muito das condições que o terreno apresenta (cf. Mt 13, 18-23). O mistério do pecado está presente em nós, junto com o mistério da graça, do perdão e da conversão […]
Um caminho que conhece provações e crises e exige discernimento espiritual. Mortos ao pecado com Cristo e renascidos à vida no Espírito, estamos, já, com um pé nos céus (cf. Ef 2, 6), capacitados a viver na terra como “ressuscitados em Cristo” (cf. Cl 3, 1-3). Este caminho conhece ainda, como seu elemento constitutivo e inevitável, limites e passagens por meio de provas e crises. Vivemos o dom do reino de Deus na dinâmica da história, pessoal e comunitária.
Limites, provas e crises, não impedem o caminho; na misteriosa pedagogia de Deus, têm uma função positiva: descobrimos a nossa fragilidade. “Quando sou fraco, então sou forte!” (2Cor 12, 10). E nos abrem à ação gratuita de Deus: “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou e enviou-nos seu filho como vítima de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 4, 10).
Tomamos consciência de que o primeiro protagonista e garantidor da nossa vida espiritual, não somos nós, mas o Senhor. A experiência do limite e do pecado, na perspectiva cristã, não gera sentido de culpa, que oprime, mas a humildade que confia na misericórdia e abre ao perdão do Pai que não se cansa jamais de perdoar (cf. Mt 18, 21-22)[…]
Precisamos da sabedoria do Espírito que é: “A graça de poder ver cada coisa com os olhos de Deus. É simplesmente isso: é ver o mundo, ver as situações, as conjunturas, os problemas, tudo, com os olhos de Deus. Isso deriva da intimidade com Deus, da relação íntima que nós temos com Deus, da relação de filhos com o Pai. E o Espírito Santo, quando nós temos essa relação, nos dá o dom da sabedoria. Quando estamos em comunhão com o Senhor, é como se o Espírito Santo transfigurasse o nosso coração” (Papa Francisco, Homilia, 9 de abril de 2014).
[…] Para Cassiano (importante monge do século V, verdadeira ponte da espiritualidade entre o Oriente e o Ocidente), o fim e a meta da vida do monge são a sua progressiva identificação com o reino de Deus, a vida no Espírito. Mas a condição para chegar a esta meta é a pureza do coração, que coincide com a caridade, com o amor. Para sustentar este processo de purificação do coração e libertar a caridade em todas as suas potencialidades, é de ajuda a ascese do corpo e a simplificação da mente, que são condições para colocar o Senhor no centro da própria vida. Discernir é seguir o que vem do Espírito e deixar cair o que vem do espírito do maligno e do “homem velho”, como diz Paulo. Para exercitar, com sabedoria, o justo discernimento, é importante viver em comunhão com a Igreja, que é comunidade de fé, em que cada um recebe ajuda e luz e também as compartilha.
Um caminho que nos conduz à inefável experiência da ‘divinização’. Se o caminho espiritual é marcado por provações e tentações, sua meta é exaltante, e vai além de toda expectativa humana. É fruto de pura graça: é a “divinização” da pessoa humana, como exprimem os pais do monaquismo do Oriente, a partilha sempre mais profunda da própria vida de Deus! Uma ousadia que o próprio Senhor fundamentou com a sua “condescendência” e o seu “rebaixamento”. “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).
Este texto é parte do livro Transfigurados no Senhor (Rio de Janeiro: Editora Benedictus, 2024).
BARGELLINI, Emanuele. Transfigurados no Senhor. Organizadores: Ana Lydia Sawaya, Thamara C.A. Rissoni, Vanderlei de Lima. Rio de Janeiro: Editora Benedictus, 2024.