Aquele que preenche toda a terra com sua ausência

“Quem é você, que preenche meu coração com sua ausência? / que preenche toda a terra com sua ausência?”, os versos são do sueco Pär Lagerkvist, Prêmio Nobel de Literatura de 1951, e estão em seu livro Aftonland (‘Terra do Anoitecer’, 1953, sem edição em português). Ele abandonou a fé cristã familiar, mas nunca conseguiu se desvencilhar de uma profunda religiosidade, a ponto de alguns o terem considerado “um cristão contra a própria vontade”.

Lagerkvist inicia o poema dizendo que “um desconhecido é seu amigo” e que seu coração está cheio de tristeza porque esse amigo está distante ou, quem sabe, nem sequer exista… O poeta pode ser considerado um paradigma da cultura ocidental de hoje, que proclama cada vez mais o agnosticismo, mas não consegue eliminar a nostalgia da promessa de infinito e do amor que transcende a todos os limites humanos, característicos da mensagem cristã.

O diálogo entre a fé e a cultura, para ser frutuoso, deve se reportar a esse coração, paradoxalmente sempre ferido pelo encontro. Aqueles que não têm consciência de terem feito esse encontro, são feridos pela ausência e pelo desejo irrealizado – mas aqueles que já têm a consciência desse encontro também permanecem feridos, agora pela beleza e pela ternura que ultrapassam a natureza humana, permanecendo como gratidão por um dom ao qual sabemos nunca sermos capazes de corresponder plenamente.

Nas Cartas do Novo Testamento, não faltam denúncias dos pecados da sociedade da época, nem convites para que os cristãos sejam virtuosos. Contudo, na passagem mais emblemática do diálogo entre fé e cultura daquele período, o discurso de Paulo no Areópago de Atenas (At 17, 16-34), o apóstolo não se dedica a críticas morais ou exortações à virtude. Anuncia especialmente o encontro com o Deus desconhecido, esse que já era venerado mesmo sem ser conscientemente experimentado, esse que, vinte séculos depois, continua preenchendo os corações humanos, como o de Lagerkvist, mesmo quando aparentemente ausente.

Tendo que anunciar aos atenienses, Paulo se dirige ao anseio mais profundo que existe em seus ouvintes… E a resposta ao nosso anseio mais profundo é sempre carregada de beleza. Nas palavras do Pontifício Conselho para a Cultura, “o belo nos diz mais sobre o verdadeiro e o bom” (Via pulchritudinis, caminho privilegiado de evangelização e diálogo, 2006). Não se trata de mero recurso estético. A Verdade é bela e um exercício de amor e bondade que não se revelasse belo não iria além de um esforço moralista. A denúncia do mal e do erro, para não se tornar ela própria fonte de maldade, deve trazer em si ao menos um vislumbre da beleza que se esconde na solidariedade para com o sofredor, no desejo verdadeiro, mesmo que extraviado, e no ideal de bem que nos permitem reconhecer o que é certo.

Em nosso primeiro Caderno Fé e Cultura, peregrinamos por alguns locais talvez improváveis nos quais Deus nos fascina com sua misteriosa presença, que de certa forma transparece até mesmo quando negada. Francisco Borba comenta os sinais da ausência de Deus na moralidade cada vez mais tortuosa dos super-heróis, em filmes e séries atuais. Arthur Baldin discute questões relativas às redes sociais e às fake news lembrando o Sr. Jordain, o “burguês fidalgo” de Molière, que se torna ridículo ao buscar se realizar num mundo de aparências e ostentação. Ana Lydia Sawaya nos apresenta a religiosidade atormentada de Jack Kerouac, um dos fundadores do movimento beat, que viveu toda a dramaticidade de um desejo que intuía o encontro, mas não conseguia construir a própria vida a partir dele. Bento XVI, meditando sobre a trágica perseguição antissemita da Alemanha nazista, nos fala das noites escuras, onde Deus parece totalmente ausente da vida de seus filhos, e do renascer da esperança. Por fim, indicamos o livro de Gennaro Iorio, professor do Departamento de Estudos Políticos e Sociais da Universidade de Salerno (Itália), que procura documentar e analisar sociologicamente a presença do amor na vida pública e nos movimentos políticos.

Também nesses tempos de pandemia, guerra, pobreza e fome crescentes, novas perseguições e confusão cultural, toda a realidade pode ser como os vasos sagrados de um templo, postos ali para louvar a Deus e nos ajudar a ter sempre em mente o Seu amor por nós.

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