O mundo de hoje nos confunde e nos subtrai esses momentos de verdade, nos entregando espaços e tempos ilusórios, que podem nos excitar, mas não nos maravilhar. É preciso saber reconhecer a diferença imensa que existe entre o ser excitado por algo e o ficar maravilhado. A primeira é uma experiência alienante, enquanto a segunda é conforme o nosso coração. Essa experiência é como uma oração: nos coloca em contato com o infinito, com o fora do tempo, com a verdade do tempo… E com o desejo verdadeiro que mora no nosso coração.
A música tem a capacidade de transformar-nos, de mover-nos, comover-nos, carregar-nos junto consigo, e nos fazer mudar de posição, de pensamento e de sentimento. Um pesquisador que estudou esse fenômeno descreveu-o assim: “Uma canção tem o inexplicável poder de sintetizar em três ou quatro minutos um momento marcante na vida de alguém. Ao ouvir de surpresa ‘aquela’ música no rádio, emoções como saudade, alegria, tristeza ou nostalgia vêm à mente e podem alterar o humor do dia, até mesmo levar alguém a tomar atitudes ou, em alguns casos, repensar sua existência. Mas muitas vezes, essa experiência (não julgada) acaba assim que começa a próxima. No oposto, quando ouvida pela primeira vez, uma composição pode ser tão marcante que se tornará referência para as futuras lembranças e sensações” (GONÇALO JÚNIOR. Cardinales bonitas. Revista Fapesp nº 120, 2006).
Nosso coração, feito para Deus. Por que é assim? O nosso coração é feito de cordas e quando estas se sintonizam com uma harmonia certa, todo o nosso ser se comove. O coração humano foi feito para algo, alguém que está fora dele, além dele, e nosso coração sempre o estará procurando. Dizia Santo Agostinho: “o nosso coração foi feito para ti Senhor, e está inquieto enquanto não repousa em Ti” (Confissões I, 1,1).
Todos os seres humanos são assim, quer tenham uma fé, quer não. Há uma canção muito famosa, Allelluyah, de Leonard Cohen (1934- 2016), que conta a história do rei Davi e diz que até Deus se comoveu com os acordes que Davi compunha quando tocava sua lira, tornando-se para sempre seu amigo:
There was a secret chord
That David played
And it pleased the Lord.
It goes like this
The fourth,the fifth
The minor fall
The major lift
The baffled King
Composing hallelluyah
Havia um acorde secreto
Que David tocou
E que agradou ao Senhor.
É assim
A quarta, a quinta
A nota menor cai
A nota maior sobe
O rei perplexo e maravilhado
Compondo hallelluyah
É preciso saber reconhecer, com inteligência e atenção, com cuidado de si, esses momentos maravilhosos. Neles reside não só uma profunda experiência de felicidade, mas a descoberta da direção certa na vida, condizente com o nosso “eu”.
A pianista que desafiou Stalin. Há uma história impressionante que aconteceu com uma das maiores pianistas russas do século XX, Marija Judina (1899-1970). Ela era judia e tinha-se convertido à Igreja ortodoxa ainda jovem. Sua história é muito tocante, viveu sua vida vendo seus amigos artistas e escritores sendo presos e mortos pelo regime. Mas ninguém teve a coragem de tocar nela até o fim da sua vida…
Conta-se que uma das suas execuções mais famosas era o Concerto n. 23K 488, de Mozart, do qual ela tocava o segundo movimento interpretando-o como uma oração, um réquiem para as vítimas dos campos de concentração de Josef Stalin (1878- 1953). Um dia, Stalin escuta no rádio sua performance tocando esse concerto, e fica tão impressionando que pede que se compre imediatamente o disco. Mas o disco não existia porque o concerto tinha sido transmitido ao vivo, pois a pianista era proibida pelo regime de gravar. Assim, sem ter coragem de explicar que a pianista não condizia com a ortodoxia política do ditador e não era agraciada com muita publicidade e sucesso, os comissários da rádio convocam com urgência Marija e a orquestra, o concerto é gravado durante uma noite às pressas e o disco, confeccionado com poucos exemplares, é entregue ao ilustre admirador. Stalin é generoso e manda uma grande soma de dinheiro para a pianista. Ela lhe envia uma carta de resposta dizendo: “Agradeço-lhe muito pela sua ajuda, Iosif Vissarionovič [nome original de Stalin]. Rezarei dia e noite pelo senhor e pedirei a Deus que perdoe os seus graves pecados contra o povo e a nação. Deus é misericordioso, o perdoará. O dinheiro o entregarei para a restauração da minha paróquia”. Conta-se que o disco com o concerto dela estava no gramofone de Stalin, quando o encontraram morto. (cf. PARRAVICINI, G. Marija Judina, più della musica. Milão: La casa di Matriona, 2010). Era exatamente a música que ela tocava para os milhões de pessoas mortas pelas atrocidades dele…