
Os enlaces entre fábula e verdade são muito antigos no Cristianismo. Embora a fantasia seja uma terra muito perigosa, repleta de ídolos e tentações, a recusa de uma existência reduzida ao mundo terreno é alicerçada amiúde em parábolas e visões místicas.
A Carta do Santo Padre Francisco sobre o Papel da Literatura na Educação (2024) estimula o amadurecimento pessoal dos cristãos fundado no reino periculoso do imaginário. O documento desafia os cristãos a se envolverem no assombro e na maravilha da fantasia, pois esta é expressão de humanidade. De fato, “a literatura inspira-se na cotidianidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais”, é um “ginásio de discernimento” no qual podemos “ouvir a voz de alguém” e “ver por meio dos olhos dos outros”. Em suma, é uma aventura nos salões da alma humana, nos quais podemos encontrar não apenas as armadilhas dos vícios, tentações e pecados, mas igualmente os tesouros de virtudes, valores e graças divinas.
A jornada exige mapas e o discernimento é fundamental para a trilha. O juízo entre a verdade e a mentira, o acerto e o erro, o sim e o não, o real e o falso é uma exigência da fé. Jesus Cristo afirmou que é “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6) e “quem é da verdade escuta minha voz” (Jo 18,37). De início, os domínios da literatura seriam falsos porque não são descrições do que é, mas apenas fabulações que distorcem a realidade. As cartas apostólicas afirmam que devemos rejeitar “as fábulas ímpias, coisas de pessoas caducas” (1Tm 4,7), para que não desviemos “os ouvidos da verdade, orientando-os para as fábulas” (2Tm 4,4), afinal “não foi seguindo fábulas sutis” (2Pd 1,16) que encontramos a redenção de Cristo.
Todavia, Jesus Cristo recorre à poética. Suas parábolas encantam multidões. Entre tantas, lembremos do filho pródigo (Lc 15,11-32); o bom samaritano (Lc 10,29-37); a ovelha perdida (Mt 18,10-14); o joio e o trigo (Mt 13,47-50); Lázaro e o rico (Lc 16,19-31). Assim, a literatura é admitida por Jesus, e na história da cultura cristã são erigidos portões magníficos entre os muros que separam a verdade do imaginário, com relíquias de pedras preciosas, dragões terríveis, lugares mágicos, feiticeiros nefastos e armas sagradas. Os santos e místicos escreveram poemas simbólicos nos quais o diálogo contínuo com o Espírito Santo era tecido por uma gramática fantástica. Hoje, as obras literárias oferecem uma rota para os recintos misteriosos da alma. Nas fábulas, o homem concebe coisas que não foram vistas, mas fabricadas em nossa mente como realidades novas. É a distinção de Aristóteles entre o historiador e o poeta, “porque um se refere aos eventos que de fato ocorreram, enquanto o outro aos que poderiam ter acontecido” (Poética, IX, 1451b5).
O documento Antiqua et Nova: nota sobre a relação entre a inteligência artificial e a inteligência humana (2025), dos Dicastérios para Doutrina da Fé e para Cultura e Educação, adverte-nos que “o perigo não está na multiplicação das máquinas, mas no número crescente de pessoas habituadas, desde a infância, a desejar apenas aquilo que as máquinas podem oferecer”. Esse “reducionismo digital” ameaça aprisionar as possibilidades da alma humana às ideias restritas pelos interesses políticos e econômicos das big techs. Nesse caso, a poética do ódio das fake news é a idolatria. O influenciador digital submisso à ideologia da polarização desumanizante é o mercador das palavras expulso da pólis por Sócrates, pois “apresta simulacros e se encontra infinitamente afastado da verdade” (República, X, 605c).
A literatura perdura como o universo tremendo e fascinante das possibilidades do imaginário. Tendo o discernimento como guia, viajar a tais reinos é um caminho de humanização. Afinal, conforme J.R.R. Tolkien, mestre católico das terras fabulosas: “A Fantasia continua a ser um direito humano; criamos, na nossa medida e ao nosso modo derivativo, porque fomos criados; e não apenas criados, mas criados à imagem e semelhança de um Criador.”