Após grandes dificuldades no século XIX, a Igreja retomou os jubileus no século XX, cada vez mais consciente daquilo que é essencial: a presença do amor misericordioso de Deus entre nós.
A Revolução Francesa e a conquista, pelas tropas de Napoleão, da maior parte da Europa, inclusive Roma, em 1798, trouxeram uma onda anticlerical que varreu o continente. Na Itália, de 1848 a 1870 ocorreu o processo de unificação, que levou ao fim do Estado Pontifício. Roma deixou de ser território eclesiástico e Pio IX se declarou prisioneiro no Vaticano. O conflito com o Estado italiano foi resolvido em 1929, com o Tratado de Latrão, que formalizou a existência do Estado do Vaticano.
Para a Igreja foi um período de provações, mas com importantes avanços. Os católicos se deram conta que que a Igreja não podia ser uma instância de poder político, envolvida em disputas de hegemonia com os Estados nacionais, mas sim um “lugar de comunhão, de testemunho e de missão, fermento de redenção e de transformação das relações sociais” (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 52). Enquanto eclipsava a figura do papa como soberano territorial, as consequências sociopolíticas dos ensinamentos de Cristo ganhavam corpo na doutrina social da Igreja, a partir da encíclica Rerum Novarum (1891).
Contudo, as perturbações políticas impediram a continuidade dos Jubileus a cada 25 anos. No século XIX, foram realizados apenas dois (1825 e 1875, este último em condições precárias). Só em 1900 a situação se normalizou e o Jubileu contou inclusive com o apoio das autoridades do Estado laico italiano.
Um novo tempo. Desde 1900, tivemos seis jubileus “ordinários” (que acontecem a cada 25 anos) e três “extraordinários”, motivados por acontecimentos especiais. Em 1933, Pio XI proclamou um jubileu extraordinário pelos 1900 anos da morte e ressurreição de Jesus e, em 1983, São João Paulo II proclamou outro pelos seus 1950 anos. Por fim, em 2015, o Papa Francisco proclamou um jubileu para o 50º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II, dedicando-o ao tema da misericórdia.
Principalmente após a Segunda Guerra Mundial, os voos comerciais transoceânicos se difundiram, fazendo com que as peregrinações para Roma pudessem ser uma proposta realmente mundial – e não apenas limitada, na prática, ao continente europeu. O jubileu de 1975 foi o primeiro a ser transmitido mundialmente. A partir do jubileu de 1983, a indulgência passou a ser oferecida também mediante a peregrinação a uma igreja local, designada pelo bispo. Essa mudança significou a universalização da peregrinação jubilar. Agora, os compreensíveis obstáculos econômicos, que permaneciam mesmo com as facilidades dos tempos atuais, estavam superados.
O Jubileu de 1975, quando o Papa era São Paulo VI, contou com a presença de monges budistas e do Patriarca de Alexandria. O Grande Jubileu de 2000, celebrado por São João Paulo II, trouxe momentos marcantes, como o pedido de perdão pelos pecados cometidos pelos católicos na história, o Martirológio dos cristãos mortos no século XX e a Jornada Mundial da Juventude em Roma, com a participação de mais de dois milhões de jovens.
A centralidade de Cristo. Ao longo do século XX, um tema recorrente nos jubileus foi a centralidade de Cristo. Com seu estilo característico, São João Paulo II, na Bula do Jubileu de 1983, exorta: “ABRI AS PORTAS AO REDENTOR! É este o apelo que, na perspectiva do Ano Jubilar da Redenção, dirijo a toda a Igreja […] Toda a vida da Igreja está imersa na Redenção e respira a Redenção” (Aperite portas Redemptori, APR 1-3). Anos depois, na passagem do Terceiro Milênio, voltaria a essa centralidade: “Tendo o mistério da encarnação do Filho de Deus diante dos olhos, a Igreja está para cruzar o limiar do terceiro milênio. Neste momento, mais do que nunca, sentimos o dever de fazer nosso o cântico de louvor e agradecimento do Apóstolo: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, do alto dos Céus, nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo (Ef 1, 3)” (Incarnationis mysterium. IM 1).
Da misericórdia à esperança. O tema da misericórdia era muito caro a São João Paulo II (cf. Dives in misericórdia), sendo o fundamento de todos os jubileus, mas coube a Francisco proclamar um voltado especificamente a ela: “Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese […] O Pai, ‘rico em misericórdia’ (Ef 2, 4) […] mandou o seu Filho, nascido da Virgem Maria, para nos revelar, de modo definitivo, o seu amor” (Misericordiae Vultus, MV 1). E, da misericórdia, brota a esperança: “Com efeito, a esperança nasce do amor e funda-se no amor que brota do Coração de Jesus trespassado na cruz […] Esta esperança não cede nas dificuldades: funda-se na fé e é alimentada pela caridade, permitindo assim avançar na vida” (Spes non confundit, SNC 3)
Para um mundo ainda mais carente de Deus. Um cético veria em tudo isso apenas um esforço da Igreja para recuperar, ao menos em parte, o prestígio perdido ao longo do século XIX e no confronto com a Modernidade. Um olhar orientado pela fé, contudo, vai além. Quanto mais a sociedade se perde na pretensão da autossuficiência, mais as pessoas perdem a capacidade de se descobrir amadas e capazes de amar, vítimas de um realismo desesperançado que vê as conquistas da ciência se tornarem instrumentos de destruição, crise ambiental e manipulação das consciências. Nesse cenário, é ainda mais importante o anúncio de um amor que é misericórdia, que não trará imediatamente uma sociedade na qual seja restabelecida a justiça, os pobres sejam saciados e a natureza descanse (como previa o Jubileu judaico), mas permitirá que cada um de nós realize mais plenamente sua humanidade, tornando-nos mais capazes de lutar por esse mundo ideal.