Precisamos recuperar este centro pessoal, fundamento da nossa humanidade, que só pode ser integrado na perspectiva do amor como nos lembra o Papa na Dilexit nos.
Dilexit nos (DN 9-18, 23, 25-26)
Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração; indicar onde cada pessoa, de qualquer classe e condição, faz a própria síntese; onde os seres concretos encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências, convicções, paixões e escolhas. Movemo-nos, porém, em sociedades de consumidores em série, preocupados só com o agora e dominados pelos ritmos e ruídos da tecnologia, sem muita paciência para os processos que a interioridade exige. Na sociedade atual, o ser humano “corre o perigo de se desorientar do centro de si mesmo” (SÃO JOÃO PAULO II. Angelus, 02/07/2000). “O homem contemporâneo encontra-se com frequência transtornado, dividido, quase privado de um princípio interior que crie unidade e harmonia no seu ser e no seu agir. Modelos de comportamento infelizmente bastante difundidos, exaltam a sua dimensão racional-tecnológica, ou, ao contrário, a instintiva” (IDEM. Catequese [in] L’Osservatore Romano, 11/06/1994). Falta o coração.
Dar ao coração seu devido lugar. […] Muitos, para construir os seus sistemas de pensamento, sentiram-se seguros no âmbito mais controlável da inteligência e da vontade. E, ao não se encontrar um lugar para o coração, como algo distinto das faculdades e das paixões humanas consideradas separadamente, também não se desenvolveu suficientemente a ideia de um centro pessoal, que só pode ser unificado, em última análise, pelo amor.
Ao não se dar o devido valor ao coração, desvaloriza-se também o que significa falar a partir do coração, agir com o coração, amadurecer e curar o coração. Quando não se consideram as especificidades do coração, perdemos as respostas que a inteligência por si só não pode dar, perdemos o encontro com os outros, perdemos a poesia. E perdemos a história e as nossas histórias, porque a verdadeira aventura pessoal é aquela que se constrói a partir do coração. No fim da vida, só isto contará.
É preciso afirmar que temos um coração e que o nosso coração coexiste com outros corações que o ajudam a ser um “tu” […] Por outro lado, este poder único do coração ajuda-nos a compreender por que é que se diz que quando apreendemos uma realidade com o coração podemos conhecê-la melhor e mais plenamente. Isto conduz-nos inevitavelmente ao amor de que esse coração é capaz, porque “o mais íntimo da realidade é amor”, como observa Karl Rahner […]
Ao mesmo tempo, é o coração que torna possível qualquer vínculo autêntico, porque uma relação que não é construída com o coração não pode ultrapassar a fragmentação do individualismo. Restariam apenas duas individualidades que se justapõem, mas não se ligam verdadeiramente. Uma sociedade cada vez mais dominada pelo narcisismo e pela autorreferencialidade é uma sociedade “anti-coração”. E, por fim, chega-se à “perda do desejo”, porque o outro desaparece do horizonte e nos fechamos no nosso egoísmo, sem capacidade para relações saudáveis. Como resultado, tornamo-nos incapazes de acolher Deus […]
Vemos assim como no coração de cada pessoa se produz esta ligação paradoxal entre a valorização do próprio ser e a abertura aos outros, entre o encontro muito pessoal consigo mesmo e o dom de si aos outros. Só nos tornamos nós próprios quando adquirimos a capacidade de reconhecer o outro, e só encontra o outro quem é capaz de reconhecer e aceitar a própria identidade.
Quando alguém reflete, procura ou medita sobre o próprio ser e a sua identidade, ou analisa questões mais elevadas; quando pensa no sentido da própria vida e até mesmo procura a Deus, e ainda quando sente o gosto de ter vislumbrado algo da verdade; todas estas reflexões exigem que se encontre o seu ponto culminante no amor. Amando, a pessoa sente que sabe o porquê e o para que vive. Assim, tudo converge para um estado de conexão e de harmonia. Por isso, diante do próprio mistério pessoal, talvez a pergunta mais decisiva que se possa fazer seja esta: tenho coração?
Um diálogo entre dois corações. Onde o filósofo detém o seu pensamento, o coração fiel ama, adora, pede perdão e oferece-se para servir no lugar que o Senhor lhe dá para O seguir. Então percebe o que é o “tu” de Deus e que pode ser um “eu” porque Deus é um “tu” para ele. Na realidade, somente o Senhor se dispõe a tratar-nos sempre – e para sempre – como um “tu”. Aceitar a sua amizade é uma questão de coração e constitui-nos como pessoas no sentido pleno da palavra.
[…] São John Henry Newman tomou como lema a frase Cor ad cor loquitur (“O coração fala ao coração”), porque, para além de toda dialética, o Senhor salva-nos falando ao nosso coração a partir de seu Sagrado Coração […] o lugar do encontro mais profundo consigo mesmo e com o Senhor não está na leitura ou na reflexão, mas no diálogo orante, de coração a coração, com Cristo vivo e presente […]
E sejamos cautelosos: tenhamos consciência de que o nosso coração não é autossuficiente; é frágil e ferido […] Precisamos da ajuda do amor divino. Recorramos, pois, ao Coração de Cristo, o centro do seu ser, que é uma fornalha ardente de amor divino e humano, a mais alta plenitude que a humanidade pode atingir. É aí, nesse Coração, que finalmente nos reconhecemos e aprendemos a amar.