Deus caritas est: o anúncio do amor para um mundo que não sabe amar

Há 20 anos, no Natal de 2005, Bento XVI publicou a encíclica Deus caritas est. Erudita e com uma passagem discreta pela história, assim como seu autor, é um texto emblemático, que bem pode ser considerado um marco da transição do catolicismo do século XX para o XXI. Não apresenta reformas doutrinais ou “invenções teológicas”, mas sim um renovado olhar sobre a fé ao recentrá-la no amor.

Arte: Sergio Ricciuto Conte

Quando Bento XVI foi eleito papa, um jornal português, ouvindo um dos orientados de J. Ratzinger, o Padre Henrique Noronha Galvão, publicou o artigo “Um místico que acredita no amor”. Sem saber, antecipava o conteúdo da encíclica Deus caritas est (DCE), lançada no Natal de 2005.

Afirmado logo no início da encíclica, o encontro pessoal com Cristo não é, evidentemente, uma “novidade”, mas a formulação dada por Bento XVI supera claramente qualquer redução ideológica ou moralística: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo […] ‘Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único para que todo o que Nele crer (…) tenha a vida eterna’ (Jo 3,16). Com a centralidade do amor, a fé cristã acolheu o núcleo da fé de Israel e, ao mesmo tempo, deu a este núcleo uma nova profundidade e amplitude” (DCE 1). Com boas razões, a ideia de que “ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa” vem sendo repetida no seio da Igreja nas últimas duas décadas. Por exemplo, o Papa Francisco volta a esta ideia em várias ocasiões, inclusive na Evangelii gaudium (EG 7) e os bispos latino-americanos citam-na no Documento de Aparecida (DAp 12). Para uma sociedade cansada de ideologias e de moralismos vazios, o encontro pessoal com Cristo representa uma forma nova e original de entender a religião e a própria vida – mesmo que seja tão antiga como o próprio Cristianismo.

A encíclica traz também uma sutil mudança no enfoque da Doutrina Social da Igreja. Não mudou, obviamente, a estrutura fundamental do magistério: Deus ama o ser humano, por isso o criou com dignidade pessoal inviolável, e todos devem se amar e respeitar mutuamente, reverberando esse amor divino. Contudo, a caridade, este amor gratuito carregado de ternura e solidariedade, tornou-se muito mais presente nos textos pontifícios posteriores. É um padrão que se repete nos documentos sociais de Bento XVI, Francisco e, agora, de Leão XIV, com a exortação Dilexi te.

Comparando, vemos que as palavras caridade e amor aparecem na segunda parte da DCE (que é dedicada especificamente à Doutrina Social da Igreja), na Caritas in veritate, na Fratelli tutti e na Dilexi te com frequência de três a cinco vezes maior do que na Centesimus annus, a encíclica social de São João Paulo II que, proporcionalmente, mais usa essas palavras. Iss o não significa que os papas do século XXI amem mais as pessoas do que seus antecessores, mas que, no contexto de nosso tempo, considerar o amor/caridade como fundamento do pensamento social cristão se torna cada vez menos óbvio e mais necessário para o anúncio cristão – e Bento XVI foi aquele que primeiro se deu conta disso.

A percepção da própria dignidade, idealmente, vincula-se a um sentimento empático pelo qual reconhecemos a dignidade do outro. Mas o drama dos refugiados ou a situação dos moradores de rua mostram como essa empatia nem sempre se manifesta e é modulada por estímulos ideológicos e pela própria situação de cada um,

A dignidade é constitutiva do ser humano, mas não é instintiva ou automática, ou mesmo uma construção social. É uma descoberta: descobrimo-nos dignos ao longo de nosso amadurecimento pessoal. Sou digno, e reconheço a dignidade dos demais, porque sou amado. Sem a experiência de ser amado — ou diante da experiência de ser “mal-amado” — a dignidade pessoal não se manifesta adequadamente, gerando ansiedade, depressão, baixa autoestima e individualismo antissocial, muitas vezes violento.

É a experiência de um amor gratuito, justamente aquilo que denominamos “caridade”, que gera uma concepção adequada da dignidade pessoal, que reconhece os próprios direitos, ao mesmo tempo em que se revela empática e solidária com a dignidade dos demais. Em uma sociedade na qual o individualismo gera uma solidão angustiante, e a luta pelo reconhecimento dos próprios direitos parece sufocar a solidariedade, Bento XVI percebeu a necessidade de uma justa compreensão e educação ao amor, para que nos tornemos conscientes de sermos “bem-amados”.

A realização do amor humano à luz do amor de Deus
Trechos da encíclica Deus caritas est
Um coração que vê: a caridade e a identidade da Igreja
Trechos da encíclica Deus caritas est
Terminado o Jubileu, a esperança continua
Por Francisco Borba Ribeiro Neto

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