Distopia e esperança em um romance de Benson

Intrigante livro de ficção científica de 1907, O Senhor do Mundo (Campinas: Sétimo Selo, 2021) projeta acontecimentos para cem anos no futuro – ou seja, para nossos dias. Trata-se de obra originalíssima, que precede os maiores clássicos do gênero, Admirável Mundo Novo e 1984, com os quais apresenta notável afinidade, criando também, a seu modo, um cenário distópico. Além disso, a obra surpreende porque foi escrita por um sacerdote, o inglês Robert Hugh Benson. 

Reprodução da obra “Tríptico da Guerra” de Otto Dix

A bem da verdade, O Senhor do Mundo não é exatamente um livro de ficção científica. Embora dê largas à imaginação, descrevendo inventos revolucionários para a época, a intenção de Benson é apresentar o resultado trágico do desenvolvimento de algumas tendências culturais, religiosas e políticas anticristãs que lançavam raízes na época. 

Pensamento único. O mundo criado por Benson é caracterizado por um “pensamento único” que se impõe de maneira sutil, porém eficaz, a todos. Resultado da convergência de influxos variados, este ideário se consubstancia em uma doutrina que, assumindo ares de religião universal, não tolera dissenso. 

Segundo tal princípio, apelidado de humanitarismo, a libertação do homem seria resultado do abandono das antigas superstições (credos ou religiões) que impediam o progresso dos povos. Em seu lugar, deveria emergir uma nova espécie de panteísmo, traduzido no culto à própria humanidade. 

Entretanto, sendo que “humanidade” é um conceito abstrato, tais premissas acabam por justificar a submissão da pessoa concreta aos imperativos da coletividade – imperativos, de resto, definidos pelos poderosos de plantão. Fecha-se o círculo, portanto, e o engodo fica patente: a negação da transcendência e a divinização do homem, fatores que deveriam emancipá-lo da sujeição a um Deus dominador, redundam na sua escravização. 

Como hoje, o pensamento único na obra alia relativismo e intransigência contra tudo que escape ao consenso. Sob o manto do discurso da tolerância, esconde-se uma vigorosa resistência a qualquer certeza. Em um mundo assim, a última voz que resiste à homologação, o único inimigo a ser combatido é o Cristianismo. 

Novas perseguições. Por isso, O Senhor do Mundo pinta um quadro em que os cristãos, reduzidos a pequena minoria, voltam a ser perseguidos. A situação lembra a dos primórdios de nossa era, mas com um agravante: em uma sociedade dotada de modernos recursos tecnológicos, o combate é conduzido de forma tremendamente eficaz. E ao cabo, a Igreja é virtualmente exterminada. 

Chegamos, assim, ao tema central da obra: trata-se de um romance sobre o fim dos tempos. Essenciais, a fim de bem compreender este aspecto, são as chaves de leitura que o leitor atento encontrará no prólogo, mas sobretudo em seu denso capítulo final. Calcado no Apocalipse, o desfecho se presta a diferentes leituras e convida à revisão de toda interpretação literal que pode ser dada aos títulos das três partes que compõem o livro: “O Advento”, “O Encontro” e “A Vitória”. 

Uma “história do futuro”. O prólogo traça o percurso entre 1907, momento em que a obra foi redigida, e o início do século XXI, período em que se passa a história. Ao escrever esta “história do futuro”, Benson não se furtou a polêmicas, disparando várias acusações incômodas para a sensibilidade atual. Obviamente, muitas “previsões” do autor não se concretizaram. Mas isso não importa: certos comentários deste surpreendente prólogo soam quase proféticos. 

O desassombro do autor levou-o até a antever a dissolução da Igreja Anglicana e de todas as denominações protestantes, que voltariam a se reunir a Roma. Para além do evidente espanto que semelhante sugestão deve ter causado na Inglaterra vitoriana, não custa lembrar que o próprio Benson havia se convertido ao catolicismo em 1903 – fato de largo alcance, inclusive porque seu pai ocupara até 1896 o posto de Arcebispo de Cantuária. 

O drama da liberdade. O Senhor do Mundo é, portanto, um livro radical e desconcertante, cuja leitura provocará admiração ou repúdio, mas nunca indiferença. Ele nos compele a tomar consciência de nossos próprios valores, como se dá com os personagens, que são obrigados a tomar partido diante das questões cruciais da existência. Com efeito, em quadra tão decisiva como a retratada no romance (não esqueçamos seu caráter escatológico), “os segredos dos corações serão revelados”, isto é, as decisões mais sutis da liberdade pessoal virão à tona. 

Ao recorrer a tais extremos, o autor sublinha a emergência do confronto entre a mentalidade comum e a tradição cristã. Por isso, a narrativa é baseada no contraste entre pares de personagens, de modo a evidenciar que o drama da liberdade nunca é anulado, mesmo diante de forte opressão. 

A primeira dupla é formada por sacerdotes. Um é o Padre Percy Franklin, protagonista da história: apesar das dúvidas que o acometem, ele permanecerá fiel a Cristo até o fim. Já o Padre Francis abandona a fé em busca de algo mais palpável; embora sobreviva nele a necessidade de prestar culto a algo superior, essa exigência é reduzida à dimensão puramente cerimonial e posta a serviço dos novos donos do poder. 

Oliver Brand e Mabel, sua companheira, partilham o entusiasmo pelo ideal da Nova Humanidade e a rejeição à antiga religiosidade. Quando as contradições da ideologia dominante despontam, porém, Oliver aceita as justificativas oficiais a fim de não abdicar do poder, ao passo que Mabel conserva certa simplicidade de espírito, cujo resultado é a abertura a um Deus desconhecido, mas pressentido como real. 

Por fim, a dupla mais importante é composta pelo já mencionado Padre Percy Franklin e por Julian Felsenburgh, que representa a encarnação dos ideais do humanitarismo. Aclamado como líder mundial, venerado como o messias que guiaria a humanidade rumo a uma nova ordem mundial, é ele o responsável pela campanha de hostilidade contra a Igreja, até o que parece ser a vitória final contra o Cristianismo. 

Há, contudo, um traço que liga o sacerdote ao tirano. A semelhança física entre os dois é sinal do parentesco existente entre o humanitarismo e os preceitos cristãos. De fato, o novo credo apresenta-se como a realização terrena das promessas do Cristianismo, despojadas de toda transcendência. 

Tentação atual. Reside aqui o aspecto mais relevante da obra. O humanitarismo ateu efetivamente apresenta face sedutora: a paz, a exaltação do homem e a filantropia são, ao menos na aparência, matérias com as quais todos devem estar de acordo. Mas sua enganosa semelhança com valores religiosos pode borrar as fronteiras entre fé e ideologia, fazendo com que os próprios cristãos assimilem uma à outra. 

Desse modo, a fé é reduzida a mera doutrina ou a uma lista de preceitos morais. E assim, até mesmo os valores em nome dos quais a fé foi esvaziada tornam-se irreconhecíveis: paz e tolerância não se conquistam por meio da uniformização de ideias; caridade não é o mesmo que filantropia; o verdadeiro humanismo não pode negar que o homem é relacionamento com o infinito.

Com efeito, a tentação de ceder a uma ideologia “ilustrada” é tanto mais forte quanto mais ela se assemelhar ao Cristianismo. Nesse caso, buscar-se-ia preservar a beleza da mensagem evangélica depurando-a de seus aspectos incômodos e construindo, em suma, um Cristianismo sem Cristo. 

O Senhor do Mundo é, em suma, um livro provocativo, que faz refletir sobre o sentido da presença cristã na história. Mais do que apenas apontar os desvios da mentalidade dominante, a obra convida a depositar a esperança em Cristo. Pois, mesmo quando tudo parece negá-lo, é Ele próprio que vem ao nosso encontro – e é esta vitória final que constitui o verdadeiro tema do romance. 

BENSON, Robert Hugh. O Senhor do Mundo. Campinas: Sétimo Selo, 2021

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