O despertar da autoconsciência no mundo fantástico de Tolkien
A Fantasia não pode ser uma fuga da realidade, uma deserção, mas sim um instrumento que nos ajuda a entrar mais dentro da realidade. Ela permite que o prisioneiro se liberte dos grilhões que o prendem cotidianamente, para, por um momento, ver melhor a realidade, sem nenhuma amarra, livre.

J. R. R. Tolkien considerava que a Fantasia nos tempos modernos é a forma mais sublime de Arte, a única capaz de despertar a autoconsciência do leitor de um modo inteiramente novo. Para ele, “a Fantasia é, creio, não uma forma inferior, mas superior de Arte, de fato, a forma mais próxima de ser pura e, portanto (quando alcançada), a mais potente”. Outros autores de mitos fantásticos reverberam esse pensamento, como C. S. Lewis, que afirma que existem verdades apenas reveladas por meio de histórias, ou Ursula Le Guin que defende o uso da fantasia como uma tarefa extremamente humana (e até mesmo um dever) no mundo moderno: “a Fantasia é escapista e essa é a sua Glória. Se o soldado está aprisionado pelo inimigo, não consideramos seu dever escapar? Se valorizamos a Liberdade de mente e de espírito, então, nosso maior dever é escapar e trazer conosco o máximo de pessoas que conseguirmos”.
Para Tolkien, o fato de a Fantasia ser tão diferente e distante do mundo real não é um mal, mas é o seu maior bem: “A Fantasia, é claro, começa com uma vantagem: uma estranheza arrebatadora”. Isso porque quanto mais diferente do mundo real, então, mais o leitor se torna livre ao se deparar com o mito fantástico, sem nenhuma opinião ou conceito pré-concebido. Ou seja, o leitor entra na história sem preconceitos, muito mais aberto à realidade que lhe está sendo apresentada e, com isso, sem tentar controlar ou impor um resultado determinado. Por isso, a Literatura fantástica se torna local de acesso privilegiado à mente e, mais especificamente, ao coração do ser humano.
Nesse sentido, depreende-se a outra grande vantagem da Fantasia: “ser totalmente um fim em si mesma”. As obras de Tolkien não são usadas como instrumentos para se chegar/afirmar determinada ideia, mas, ao contrário, para Tolkien a fantasia é totalmente um fim em si mesma. Logo, não é uma ferramenta para dizer algo, tem seu próprio valor. Isso é de fundamental importância porque nos liberta da tentação de usar a Arte de forma maniqueísta, isto é, de fazer uso da arte para impor algo que já sabemos, já vivemos, uma doutrina, uma maneira de fazer as coisas, um pensamento que, então, aplicamos e transformamos artificialmente em algo que reflete esse pensamento; o que condiciona o imaginário do leitor a uma visão de mundo pré-definida. Em vez disso, o que Tolkien faz é exatamente o oposto. O ponto de partida não é a ideia, o pensamento, o conhecimento, a doutrina, mas é o detalhe, o particular, a história individual, a aventura inesperada, a fonte, a semente, o coração. E indo ao fundo disso é assim que se chega à verdade, de forma inteiramente livre. Portanto, não é uma posse intelectual ou uma tentativa de impor determinada perspectiva ao leitor, mas sim é a arte gratuita para Tolkien. E é precisamente por sua gratuidade – cifra da ação de Deus – que se pode surgir algo de verdadeiro. E termino com este trecho de J. R. R. Tolkien:
“A Fantasia continua a ser um direito humano; criamos, na nossa medida e ao nosso modo derivativo, porque fomos criados; e não apenas criados, mas criados à imagem e semelhança de um Criador.” [Tree and Leaf, including Mythopoeia]