Quem cada um de nós é? Em grande parte, o fruto de nossa história… Não éramos, ao nascer, uma tabula rasa, uma “lousa em branco”, como queriam os filósofos empiristas do passado. Nascemos com uma “natureza humana”, universal e inescapável, que nos confere uma dignidade inalienável e uma potencial empatia com toda a humanidade. Nascemos com alguns traços de personalidade próprios, fundamentais para que nos tornemos “únicos e irrepetíveis”, tal qual proclama tradicionalmente a Doutrina Social da Igreja – e, porque não dizer, tal qual nosso coração sempre deseja que sejamos para aqueles que amamos. Porém, essa matéria–prima original vai sendo moldada ao longo de nossa vida, de tal forma que nossa identidade humana vai sendo formada em um processo dinâmico no qual se entrelaça com a memória individual e coletiva, com o contexto histórico em que nos inserimos.

Não existe um ser humano sem história, toda pessoa acumula experiências, interações e aprendizados que formam a sua história. Mesmo que essa história não seja registrada em documentos ou livros, ela existe e é vivida por cada um. Contudo, ter vivido uma histórica não significa ter uma consciência histórica de si mesmo, compreender-se fruto de um processo, que será inevitavelmente constituído tanto por momentos positivos quanto negativos, vincular-se intencionalmente a pessoas, acontecimentos, contextos e lugares essenciais para a própria autoconsciência.
A memória, entendida não como simples lembrança, mas como integração, compreensão e significação dos acontecimentos históricos, é fundamental para a formação da identidade. Nossas memórias nos ajudam a compreender quem somos, ligando nosso presente a nossas experiências passadas e aspirações futuras. Por isso, provocar o esquecimento do passado ou falsear a memória estão entre os mais poderosos instrumentos para manipular a consciência e as opções tanto das pessoas individualmente quanto das comunidades. Ciente deste fato, o Papa Francisco publicou, em 2024, a Carta sobre a renovação do estudo da história da Igreja.
Nos últimos anos de seu pontificado, Francisco escreveu vários documentos nos quais transparece o desejo de propor um tipo humano, um modo de ser, característico do cristão. Para isso, valeu-se do exemplo de personagens históricos, como Blaise Pascal e Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face, do aprofundamento de aspectos da espiritualidade cristã, como a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e até mesmo de aspectos gerais da cultura, como o interesse pela literatura e pela história. Ser cristão pressupõe uma espiritualidade moldada pelo encontro com Cristo, um empenho social orientando pelo amor ao próximo e a construção do bem comum – mas essas dimensões se mostram parciais e falhas se não moldam uma identidade em sua totalidade.
Conhecer a história do povo de Deus. Nossa identidade cristã não pode ser compreendida sem a rica Tradição do povo católico. Um certo desvio tradicionalista tende a petrificá-la em formas imutáveis, sem se dar conta de que se trata de uma Tradição viva, que se desenvolve e produz continuamente novos frutos ao longo da história. Um certo desvio progressista quer esquecê-la ou reconstruí-la ao gosto do momento, imaginando que a negação do passado, em função de seus erros, nos fará mais santos e imaculados – sem se dar conta de que um povo sem passado não é mais puro por causa disso, apenas menos consciente de si próprio e menos capaz de construir, de forma crítica e realista, o seu futuro. Como Francisco lembrou em várias ocasiões, “a tradição é a garantia do futuro e não a guarda das cinzas”.
Conhecer e amar a história da Igreja, com todas as suas maravilhas, mas sem esquecer aqueles erros que devem ser evitados, é uma condição essencial para podermos viver integralmente nossa fé no mundo. Não se trata de intelectualismo ou mera curiosidade, trata-se de saber de onde viemos, como nos tornamos aquilo que somos, o que devemos fazer para continuar sendo o que somos e nos tornamos aquilo que almejamos ser. Por isso, esta edição do Caderno Fé e Cultura recorda justamente essa Carta do Papa Francisco sobre a história da Igreja.
Olhar para os nossos jovens. Recentemente, uma série da Netflix balançou consciências e revelou-se um instrumento de alerta como poucas vezes vimos na TV e no streaming. A trágica história de um adolescente que assassina uma colega de classe, o tortuoso e frustrante caminho dos adultos que tentam compreender esse horror são os temas da série britânica Adolescência. Não poderíamos deixar passar o semestre sem nos fazermos uma pergunta fundamental: O que o Cristianismo pode dizer diante do dramático contexto em que vivem nossos jovens de hoje?
Não existem respostas fáceis ou fórmulas mágicas nascidas dessa pergunta. Contudo, esperamos que os artigos apresentados neste Caderno Fé e Cultura ajudem nessa reflexão. A falta de diretrizes claras, um laxismo e uma omissão que se autodenominam liberdade não são solução para os problemas. O retorno a um universo disciplinador do passado também. Nem mesmo uma moderação anódina, frequentemente camuflada sob a aparência de uma educação consciente. Cada vez mais, os jovens lançam aos adultos a dolorosa pergunta: Conseguiremos ser amados e felizes? Para os cristãos, a tragédia acontece quando os adultos não conseguem responder positivamente, com seu testemunho, a essa dramática indagação.