Jack Kerouac, que estaria comemorando 100 anos se estivesse vivo, foi um dos maiores escritores da geração beat, que desembocaria no movimento hippie. Homem polêmico e controverso, sua vida estava longe dos padrões morais católicos. Contudo, depois que seus Diários (L&PM Pocket, 2012) foram publicados, passou-se a conhecer melhor a sua intensa e constante busca de Deus, seu relacionamento familiar e vivo com Jesus. Sua religiosidade foi inclusive objeto de artigos de La Civiltà Cattolica e de L’Osservatore Romano.
Foi visto como ícone da vida dissipada, fundador da era das drogas e sexo livre. Mas, ele não era isso. Mesmo que pareça escandaloso, viveu tudo isso buscando a verdade, o Cristo real. Ao aproximarmos da sua história e da sua vida é impossível não lembrar que Jesus, censurado por conviver com publicanos e pecadores, disse ter vindo para eles, para levá-los ao arrependimento (Lc 5, 29-32)… E o primeiro que Cristo declarou levar ao Reino dos Céus era um malfeitor (Lc 23, 42-43).
Jack se deu conta da insensatez da sociedade em que viveu e de como esse não era o caminho para encontrar o Jesus real. Decidiu viver na pobreza, buscando, pelas estradas americanas, como diz em um trecho do seu livro mais famoso On The Road, AQUILO.
Quem conhece o vosso nome, em vós espera,
porque nunca abandonais quem vos procura (Sl 9)
O mundo atual deixou de ser aquele onde os valores cristãos eram mais ou menos seguidos e a santidade era reconhecida. Agora, tudo parece ter se tornado líquido, confuso. Será que Deus abandonou o mundo? Nunca houve antes milhões de pessoas afirmando, como agora, que Ele não existe… Vemos tudo virando de cabeça para baixo, inclusive a natureza…
Ainda é possível a esperança cristã? Sim, porque sabemos com certeza que Cristo crucificado, morto e ressuscitado é a companhia definitiva de Deus e não nos abandonará. Mas onde Ele se faz presente? Como encontrá-lo? Onde o Espírito está agindo? Em quem está se fazendo presente?
Um olhar mais atento para a realidade atual consegue descobrir, com nitidez, a presença de certas pessoas que no meio da confusão e da loucura procuram a Deus com sinceridade. Algumas são tão perdidas e confusas como a realidade que as envolve. Vivem no meio da desordem e da loucura e, exatamente por causa da sua busca radical, se jogam de forma extrema na realidade, procurando encontrar algo de verdadeiro que apazigue o desejo de infinito do seu coração – pois o coração do ser humano foi feito para Deus (quer queira, quer não).
Deus não deixa de escutar um desejo sincero de encontrá-Lo, mas nosso caminho depende das pessoas que encontramos, do lugar onde nascemos e do contexto cultural. Por isso, encontrar alguém que nos mostre com a própria forma de viver, de modo persuasivo, um caminho de fé é uma grande fortuna.
O caminho de Jack. Fundador de um estilo literário novo, Jack Kerouac (1922-1969) era católico. On the Road (‘Pé na estrada’, L&PM Editores, 2004), seu romance mais famoso, foi um ícone da geração beat (palavra que significa muitas coisas: batida rítmica do jazz, pulsação; mas para Jack significava beatitude) e do movimento hippie.
Jack se entristeceu ao descobrir o que seu livro tinha provocado. Não tinha sido compreendido. E, no final da vida, se afastou de tudo. O meio que havia encontrado (difícil, problemático, sofrido e, como ele diz muitas vezes, profundamente triste) prevaleceu sobre a meta. As aparências prevaleceram e tudo pareceu se reduzir à busca do prazer pelo prazer. Mas não era isso que havia perseguido na vida.
Suas constantes viagens, que à primeira vista pareciam apenas diversão e descompromisso, eram uma busca pelo REAL, aquilo que realmente é. Para ir “além”, ele experimentou tudo o que estava à mão: álcool, marijuana, benzedrina, mulheres… Queria compreender até o fundo a condição humana, suas reais sensações, sentimentos e pensamentos. Não o que se deve ser, mas o que se é realmente.
Queria conhecer o ser humano real porque intuía que assim encontraria a Deus. Tinha sempre a percepção de que Ele só pode ser encontrado pela pessoa “real”; o único caminho é a sinceridade total e a autenticidade.
Não era um amoral ou imoral. Sabia que a estrada dos prazeres e do álcool é mortífera. Por que escolheu essa estrada? Talvez para espantar a tristeza, sua companheira constante. A necessidade de lutar contra ela estava sempre presente.
A redenção possível. O que descobriu? Que em TODA a realidade, até na mais horrível e abjeta, Deus está presente. Há uma positividade última em tudo o que existe e em todo o mover humano. Nada pode ser jogado fora. Dirá no seu Diário:
“Não importa o que tenha sido feito ao homem, ele não deve ser destruído ou destruir a si mesmo (ndr. falava da pena capital e do suicídio), porque, em toda a desordem e ruína horripilante do mundo e da imaginação humana, ainda há vida e a possibilidade de redenção através do mero vislumbre da terra, através da admiração, o mais abjeto tipo de admiração se arrastando por uma rua, e nisso a coisa inteira pode ser redimida.”
A história lhe fez jus e sempre mais se compreende sua mensagem profunda, seu olhar contemplativo sobre as loucuras do mundo, a sua sensibilidade religiosa. Jack tinha constantemente o Novo Testamento consigo e rezava antes de começar qualquer coisa.
Desde a sua infância até a sua morte aos 47 anos de cirrose, escrevia a Deus, orações para Jesus e poesias dedicadas a Paulo, pedia pela sua salvação. Jesus é próximo, vivo e um interlocutor presente. Dirá no Diário: “Jesus, a tua é a única resposta para todos os seres vivos”.
Como os loucos de Cristo. Ao ler seus livros e conhecer sua história vieram-me em mente os monges russos jurodivye, os “loucos” de Cristo que desde a Idade Média vivem vagando a esmo pelas estradas, como vagabundos. Vivem no mundo como o lugar “em que se evidencia a alteridade do reino de Deus, mediante uma radical contestação de toda e qualquer lógica mundana” (PIOVANO, A. Monachesimo nel mondo, Paoline, 2010). Para eles, há uma “irredutível oposição entre a sabedoria deste mundo e a pregação de Jesus Cristo crucificado. Por isso, escandalizam os espíritos embebidos pelo racionalismo, para os quais a razão humana é a medida de todas as coisas”. E “com gestos simbólicos, cuja estranheza toca a imaginação e acorda as consciências adormecidas, os loucos de Cristo condenam a ordem mentirosa e testemunham uma nova ordem do reino de Deus, manifestada para aqueles que zombam da razão humana e das suas enganadoras prudências”.
Dois aspectos sintetizam essa experiência religiosa: um agir que provoca o desprezo dos homens, mas é arma contra o orgulho espiritual e uma missão profética. Bela síntese para a vida de Jack.
Muito bom!! Há quanto tempo não lia sobre o Jack Kerouac… muito bom!
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Sobre os Loucos de Cristo russos, há um belo filme desse país: Ostrov: A Ilha 2006
Dirigido por: Pavel Lungin; vale a pena conferir.