Jack Kerouac, um “louco” de Cristo

Beatniks in coffee house”, de Robert Huffstutter (Flickr)

Jack Kerouac, que estaria comemorando 100 anos se estivesse vivo, foi um dos maiores escritores da geração beat, que desembocaria no movimento hippie. Homem polêmico e controverso, sua vida estava longe dos padrões morais católicos. Contudo, depois que seus Diários (L&PM Pocket, 2012) foram publicados, passou-se a conhecer melhor a sua intensa e constante busca de Deus, seu relacionamento familiar e vivo com Jesus. Sua religiosidade foi inclusive objeto de artigos de La Civiltà Cattolica e de L’Osservatore Romano.

Foi visto como ícone da vida dissipada, fundador da era das drogas e sexo livre. Mas, ele não era isso. Mesmo que pareça escandaloso, viveu tudo isso buscando a verdade, o Cristo real. Ao aproximarmos da sua história e da sua vida é impossível não lembrar que Jesus, censurado por conviver com publicanos e pecadores, disse ter vindo para eles, para levá-los ao arrependimento (Lc 5, 29-32)…  E o primeiro que Cristo declarou levar ao Reino dos Céus era um malfeitor (Lc 23, 42-43).

Jack se deu conta da insensatez da sociedade em que viveu e de como esse não era o caminho para encontrar o Jesus real. Decidiu viver na pobreza, buscando, pelas estradas americanas, como diz em um trecho do seu livro mais famoso On The Road, AQUILO.

Quem conhece o vosso nome, em vós espera,
porque nunca abandonais quem vos procura (Sl 9)

O mundo atual deixou de ser aquele onde os valores cristãos eram mais ou menos seguidos e a santidade era reconhecida. Agora, tudo parece ter se tornado líquido, confuso. Será que Deus abandonou o mundo? Nunca houve antes milhões de pessoas afirmando, como agora, que Ele não existe… Vemos tudo virando de cabeça para baixo, inclusive a natureza…

Ainda é possível a esperança cristã? Sim, porque sabemos com certeza que Cristo crucificado, morto e ressuscitado é a companhia definitiva de Deus e não nos abandonará. Mas onde Ele se faz presente? Como encontrá-lo? Onde o Espírito está agindo? Em quem está se fazendo presente?

Um olhar mais atento para a realidade atual consegue descobrir, com nitidez, a presença de certas pessoas que no meio da confusão e da loucura procuram a Deus com sinceridade. Algumas são tão perdidas e confusas como a realidade que as envolve. Vivem no meio da desordem e da loucura e, exatamente por causa da sua busca radical, se jogam de forma extrema na realidade, procurando encontrar algo de verdadeiro que apazigue o desejo de infinito do seu coração – pois o coração do ser humano foi feito para Deus (quer queira, quer não).

Deus não deixa de escutar um desejo sincero de encontrá-Lo, mas nosso caminho depende das pessoas que encontramos, do lugar onde nascemos e do contexto cultural. Por isso, encontrar alguém que nos mostre com a própria forma de viver, de modo persuasivo, um caminho de fé é uma grande fortuna.

O caminho de Jack.  Fundador de um estilo literário novo, Jack Kerouac (1922-1969) era católico. On the Road (‘Pé na estrada’, L&PM Editores, 2004), seu romance mais famoso, foi um ícone da geração beat (palavra que significa muitas coisas: batida rítmica do jazz, pulsação; mas para Jack significava beatitude) e do movimento hippie.

Jack se entristeceu ao descobrir o que seu livro tinha provocado. Não tinha sido compreendido. E, no final da vida, se afastou de tudo. O meio que havia encontrado (difícil, problemático, sofrido e, como ele diz muitas vezes, profundamente triste) prevaleceu sobre a meta. As aparências prevaleceram e tudo pareceu se reduzir à busca do prazer pelo prazer. Mas não era isso que havia perseguido na vida.

Suas constantes viagens, que à primeira vista pareciam apenas diversão e descompromisso, eram uma busca pelo REAL, aquilo que realmente é. Para ir “além”, ele experimentou tudo o que estava à mão: álcool, marijuana, benzedrina, mulheres… Queria compreender até o fundo a condição humana, suas reais sensações, sentimentos e pensamentos. Não o que se deve ser, mas o que se é realmente.

Queria conhecer o ser humano real porque intuía que assim encontraria a Deus. Tinha sempre a percepção de que Ele só pode ser encontrado pela pessoa “real”; o único caminho é a sinceridade total e a autenticidade.

Não era um amoral ou imoral. Sabia que a estrada dos prazeres e do álcool é mortífera. Por que escolheu essa estrada? Talvez para espantar a tristeza, sua companheira constante. A necessidade de lutar contra ela estava sempre presente.

A redenção possível. O que descobriu? Que em TODA a realidade, até na mais horrível e abjeta, Deus está presente. Há uma positividade última em tudo o que existe e em todo o mover humano. Nada pode ser jogado fora. Dirá no seu Diário:

“Não importa o que tenha sido feito ao homem, ele não deve ser destruído ou destruir a si mesmo (ndr. falava da pena capital e do suicídio), porque, em toda a desordem e ruína horripilante do mundo e da imaginação humana, ainda há vida e a possibilidade de redenção através do mero vislumbre da terra, através da admiração, o mais abjeto tipo de admiração se arrastando por uma rua, e nisso a coisa inteira pode ser redimida.”

A história lhe fez jus e sempre mais se compreende sua mensagem profunda, seu olhar contemplativo sobre as loucuras do mundo, a sua sensibilidade religiosa. Jack tinha constantemente o Novo Testamento consigo e rezava antes de começar qualquer coisa.

Desde a sua infância até a sua morte aos 47 anos de cirrose, escrevia a Deus, orações para Jesus e poesias dedicadas a Paulo, pedia pela sua salvação. Jesus é próximo, vivo e um interlocutor presente. Dirá no Diário: “Jesus, a tua é a única resposta para todos os seres vivos”.

Como os loucos de Cristo. Ao ler seus livros e conhecer sua história vieram-me em mente os monges russos jurodivye, os “loucos” de Cristo que desde a Idade Média vivem vagando a esmo pelas estradas, como vagabundos. Vivem no mundo como o lugar “em que se evidencia a alteridade do reino de Deus, mediante uma radical contestação de toda e qualquer lógica mundana” (PIOVANO, A. Monachesimo nel mondo, Paoline, 2010). Para eles, há uma “irredutível oposição entre a sabedoria deste mundo e a pregação de Jesus Cristo crucificado. Por isso, escandalizam os espíritos embebidos pelo racionalismo, para os quais a razão humana é a medida de todas as coisas”. E “com gestos simbólicos, cuja estranheza toca a imaginação e acorda as consciências adormecidas, os loucos de Cristo condenam a ordem mentirosa e testemunham uma nova ordem do reino de Deus, manifestada para aqueles que zombam da razão humana e das suas enganadoras prudências”.

Dois aspectos sintetizam essa experiência religiosa: um agir que provoca o desprezo dos homens, mas é arma contra o orgulho espiritual e uma missão profética. Bela síntese para a vida de Jack.

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Mari
Mari
8 meses atrás

Muito bom!! Há quanto tempo não lia sobre o Jack Kerouac… muito bom!
👏🏽👏🏽👏🏽

Victor Lins
Victor Lins
4 meses atrás

Sobre os Loucos de Cristo russos, há um belo filme desse país: Ostrov: A Ilha 2006
Dirigido por: Pavel Lungin; vale a pena conferir.