Milagres atribuídos à intercessão de Nossa Senhora, pela arte de Cláudio Pastro na Basílica de Aparecida

Quem visita a Basílica de Aparecida não pode deixar de ir rezar à frente da pequena imagem de Nossa Senhora. Nas duas rampas que dão acesso a seu nicho, Cláudio Pastro representou os primeiros milagres atribuídos à sua intercessão. Na rampa de subida, a pesca milagrosa. Naquela de descida, alguns dos milagres mais notórios, tão singelos quanto emblemáticos.

Os espaços sacros do primeiro milênio do cristianismo, continham uma arte que fazia conhecer a Escritura e a Tradição, o que chamamos de teologia visual, em que figuras eram prenhes do que se celebrava e ensinava. Não por acaso os espaços sacros eram conhecidos por Bíblia Pauperum, livro dos que não sabiam ler. As paredes das igrejas comunicavam, pelas imagens, cores e traços, a riqueza do que ali era celebrado. Era uma arte que ajuda a celebrar e entender a fé, uma teologia que se via com os olhos.

Escolhido para assumir o projeto de elaboração artística para o acabamento da Basílica de Aparecida, Cláudio Pastro (1948-2016), com formação embasada pelo Concílio Vaticano II, foi beber da fonte da arte dos primeiros séculos da Igreja, resgatando muito do que fora esquecido ao longo dos dois milênios de caminhada. 

Para o projeto iconográfico da maior igreja mariana do mundo, Pastro buscou referência na arte primitiva cristã, na iconografia bizantina, no românico, na modernidade da arte de Henri Matisse (1869-1954), Victor Brecheret (1894-1955), Galileo Emendabili (1898-1974), na arte indígena, africana, etc. 

O artista pensou uma iconografia alusiva à Jerusalém Celeste (“E agora estão nossos pés dentro de tuas portas, Jerusalém!”, Sl 122, 2), “o lugar onde Cristo se apresenta como Senhor do Cosmo e do Tempo”; alusiva ao jardim do Éden, lugar perdido pela desobediência humana e recuperado pela obediência do Novo Adão, gestado no seio da Nova Eva, a Virgem Maria.  É o lugar onde Deus se manifesta e acolhe os peregrinos oriundos de todos os cantos do Brasil. Na arte litúrgica do espaço, mesclou a história da devoção a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, e a piedade popular, temas concernentes a fé do povo brasileiro, de tal modo que aquele que adentra esse espaço se sente num lugar que lhe pertence, pois ali há uma beleza que recorda um oásis, “lugar de vida, repouso e peregrinação”, onde cada um é alimentado espiritualmente para a missão que lhe compete. 

Os primeiros milagres atribuídos à intercessão de Nossa Senhora da Conceição Aparecida estão representados pelo artista em dois grandes painéis na rampa de acesso à Imagem. Em traços simples, fazem ver que a arte da Igreja é simbólica e não retratista; em cores chapadas, sobressaindo o azul (turquesa/cobalto), ouro e branco. Feitos em azulejos 15x15cm, fazem ligação com a fé judaico-cristã, pois o azulejo tem origem em Ur, terra de Abraão, nosso pai na fé. O azulejo também faz referência a nossa tradição ibérica, “herdada dos árabes e estes da cultura oriental persa”. Material feito a partir do barro queimado e vitrificado, recorda a material da qual o homem foi moldado pelas mãos divina, e mesmo material utilizado na feitura da Imagem de Nossa Senhora Aparecida.

Fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO

A imagem é encontrada. O primeiro deles, refere à pesca milagrosa da Imagem, em 1717. No painel, além da cena da pesca, vemos um jardim de palmeiras, alusão ao Morro dos Coqueiros, lugar da ereção da Capela de Nossa Senhora, e ao Brasil que primeiramente fora chamado pelos povos originários de “Pindorama”, o mesmo que “terra de palmeiras”. Na cena constam plantas características da vegetação ribeirinha da região, no alto, uma revoada de garças faz menção à vila de Guaratinguetá, nome que na língua indígena, significa “cidade de garças brancas”, a qual pertencia o atual município de Aparecida. Abaixo do painel, vê-se faixas nas quais contém flor-de-lis (Cântico dos Cânticos), rãs muiraquitãs (Ressurreição), flor de maracujá e tamareira (alusão ao Brasil e ao oásis).

Na descida da rampa, o segundo painel traz outros milagres do início da devoção: o milagre das velas, a menina cega, o cavaleiro ateu e o escravo liberto.

O milagre das velas. De acordo com registros, este milagre provavelmente aconteceu em 1735, em um dia de sexta-feira enquanto um grupo de pessoas rezava o terço diante da Imagem no primitivo oratório no Itaguaçu. Durante a reza, as velas do altar onde fora colocada a “Santa” se apagaram sem que houvesse sinal de vento, em uma noite serena. Quando alguém se apressou para reacender as velas, de forma milagrosa estas se acenderam sem intervenção humana.  No Livro do Tombo da paróquia Santo Antônio de Guaratinguetá consta o ocorrido:

“E a Senhora Aparecida começou a manifestar-se. Em uma dessas ocasiões, apagaram-se duas luzes de cera da terra repentinamente, que alumiava a Senhora; estando a noite serena, a escuridão era absoluta, e querendo logo Silvana da Rocha acender as velas, também se viram logo, de repente, acesas, sem intervenção de pessoa alguma. Foi este o primeiro prodígio… o milagre foi contado e comentado” (I Livro do Tombo da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá, folha 78 e verso).

O acontecimento foi motivo de comoção e divulgado pela região, contribuindo para que a capela passasse a ser mais visitada por peregrinos vindos de diversos lugares.

A Mãe não nos quer escravos. Feito milagroso que espalhou rapidamente foi o conhecido “milagre do escravo”. Pelo que se tem de registro confiável, o milagre ocorreu por volta do ano de 1790, pois existem em anos posteriores registros sobre o ocorrido. O primeiro que o registrou por escrito foi o escrivão da Mesa Administrativa da Capela, Pe. Claro Francisco de Vasconcellos durante sua estada nessa função de 1824 a 1830. As evidências sobre o período da escravidão no Brasil ajudam a atestar a ocasião do milagre, foi nesse ínterim que o Vale do Paraíba vivia o ciclo da cana-de-açúcar, chamado de período do “ouro branco”, riqueza conquistada à custa de trabalho escravo. O relato de arquivos conta que:

“Um escravo fugitivo, que estava sendo conduzido de volta à fazenda pelo seu patrão, ao passar pela Capela pediu para fazer oração diante da imagem. Enquanto o escravo estava em oração, caiu repentinamente a corrente deixando intacto o colar que pendia de seu pescoço. A corrente se encontra até hoje, pendente da parede do mesmo Santuário, como testemunho e lembrança de que Maria Santíssima tem suprema autoridade para desatar as prisões dos criminosos pecadores arrependidos. Aquele senhor, tocado pelo milagre ofereceu a Nossa Senhora o preço dele e o levou para casa como uma pessoa livre, afim de amar e estimar aquele seu escravo como pessoa protegida pela soberana Mãe de Deus” (Arquivo da Cúria Metropolitana da Arquidiocese de Aparecida, Autos de Ereção e Bênção da Capela de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, fls. 3v e 4).

A ferradura que marcou a pedra. Notório foi também o milagre referente ao cavaleiro ateu, fazendeiro que pelo atrevimento que a falta de fé lhe conferia, ao passar pelas paragens onde estava a capela de Nossa Senhora Aparecida, prometeu entrar na mesma a cavalo e só apear diante do oratório da imagem da Virgem. Quando tentou entrar, na escadaria de acesso ao lugar sagrado, o animal, mesmo sob chicote e esporas, travou as patas dianteiras, ficando ali a marca da ferradura sobre uma pedra – a qual até hoje se encontra no museu da Basílica, e é motivo de curiosidade e sinal de fé para muitos que visitam o Santuário.

E os cegos poderão ver. Acontecimento pouco divulgado, e que o artista fez constar no conjunto de painéis, relata o “milagre da cega de Jaboticabal” que chegou aos nossos dias através da tradição oral. Contam que, uma mãe na esperança de um milagre, saiu de Jaboticabal com sua filha que tinha deficiência visual. Ao chegar em Aparecida, a certa distância da Capela, a menina expressa encantada quão bela era a casa da Virgem Aparecida.

Sinais de gratidão. Em todo santuário onde o povo se reconhece agraciado por milagres (e mesmo em locais de menor expressão, como ermidas de beira de estrada, oratórios de praças), se encontra um local destinado à entrega dos ex-votos, a “sala dos milagres”.

Etimologicamente, ex-voto é uma locução de origem latina, que quer dizer “segundo a promessa feita”. Refere-se, portanto, a um objeto oferecido à divindade, seja do mundo pagão ou de qualquer religião atual, para confirmar uma graça recebida ou em cumprimento de uma promessa feita. Os ex-votos estão entre os mais originais testemunhos da fé popular: um sinal vivido da necessidade humana de comunicar à divindade a gratidão pela intercessão nos assuntos dos fiéis.

Na Basílica de Aparecida, existe a centenária “Sala dos Milagres” ou das “Promessas”, segundo lugar mais visitado no Santuário, depois da Imagem, onde aqueles que se reconhecem contemplados com uma graça depositam ex-votos em forma de gratidão. Em sua história, recebeu vários nomes, como “Casa dos Milagres”, “Quarto dos Milagres”, “Sala das Promessas”. No local, mescla de museu com lugar de oração, está sinalizada a graça de Deus na vida de milhares, sendo mais que “sala das promessas”, é de dimensão eucarística, de bênçãos. Ali, o peregrino admira, reza, se emociona, agradece e louva a Deus.

Além das comuns peças de cera em forma de partes do corpo que têm por objetivo testemunhar a graça, são entregues pinturas, fotografias, vestuários, miniaturas de automóveis, maquetes de casas, objetos esportivos, teses acadêmicas, joias, esculturas, e os singulares testemunhos em forma de cartas, desenhos e fotos, confirmando graças alcançadas.

Local que Pastro quis eternizar no segundo painel fazendo ver uma coleção de ex-votos que testemunham que milagres e graças continuam a acontecer, e que o espaço corresponde à fé rudimentar de um povo simples, para quem, “Milagre” de modo geral, são todos os dons e graças recebidos de Deus, por intercessão dos santos, especialmente da Virgem Maria.

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