O castelo de vidro

Em 2008, a jornalista Jeannette Walls publicou um bestseller autobiográfico sobre a atribulada vida da sua família e como de uma infância muito difícil e, por vezes, à beira da insanidade e dos abusos, chegou a tornar-se uma colunista de prestígio, escrevendo para o New York Magazine e o USA Today. E em 2017, o diretor Destin Cretton levou essa história ao cinema. E a Netflix a oferece na sua plataforma.

O filme vai e volta num contínuo flash black, com o presente em 1989, quando Jeannete já é uma reconhecida jornalista e está a ponto de se casar, para os anos em que morava com seus pais e irmãos.

Dostoiévsky chegou a dizer que não havia nada mais surrealista do que a própria realidade e, depois da primeira meia hora do filme, já dá para concordar com ele. É difícil acreditar que tanto o pai quanto a mãe, magnificamente interpretados por Woody Harrelson e Naomi Watts, possam ser pessoas tão irresponsáveis e tão fora do real com relação ao cuidado e educação de seus filhos. Com o pretexto de liberdade, de uma anarquia contra o sistema e de querer viver uma vida de aventuras e sem compromissos, esquecem-se e descuidam das atenções mais elementares e corriqueiras para se ter com crianças, que ainda por cima são seus filhos.

Os pais vivem fugindo de tudo e de todos, precisamente porque devem a tudo e a todos: Receita Federal, Polícia, enfermeiras, médicos, mestres… e os filhos vão aprendendo a viver enquanto sobrevivem. Rex, o pai, é um veterano da guerra do Vietnã e sonha continuamente em construir precisamente o castelo de vidro que dá título ao filme. Mas o alcoolismo o mantém preso, mesmo depois de fazer esforços ingentes para se libertar dele. A mãe, Rose Mary, é uma artista da cabeça aos pés, mas talvez por isso, vive presa na sua própria estética e se perde nos seus próprios quadros, tendo dificuldades para enxergar as necessidades das suas crianças.

É comovente a tensão, maravilhosamente interpretada, entre uma Jeannette menina, que adora e admira o seu pai, que, por sua vez, tem fogo no olhar, é apaixonado por sua filha mais velha e por toda a sua família e, ao mesmo tempo, é incapaz de tornar-se responsável por eles. Dói nas entranhas ver essa menina vendo seu ídolo desmoronar…

A Jeannette adulta volta a se cruzar na vida dos seus pais de forma surpreendente no começo do filme e, depois, à medida que a decisão de casar vai se tornando firme. Aliás, talvez esteja aí um dos pontos mais intrigantes da vida dessa família e da relação de pai e filha. Não avanço mais para não dar spoiler, mas, apesar de tudo, de tanto e tanto sofrimento, tanta e tanta decepção, esses dois corações estavam unidos, se conheciam e se amavam profundamente. O difícil – sempre é – o verdadeiramente difícil é, depois de tantas e tantas feridas e cicatrizes, saber e poder perdoar e perdoar-se. E, nesse ponto, acredito que o diretor soube tocar a tecla certa do coração do espectador. O almoço de Ação de Graças já vale o filme.

O castelo de vidro (The Glass Castle)

Direção: Destin Daniel Cretton
Roteiro: Destin Daniel Cretton, Andrew Lanham, Jeannette Walls
Elenco: Brie Larson, Naomi Watts, Woody Harrelson
Produção: Gil Netter Productions (2017)
Disponível:
Amazon Prime Video, Netflix

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