O Colégio São Paulo de Piratininga e a história da Igreja na cidade

Quando, hoje em dia, entramos no Pateo do Collegio, no centro da cidade de São Paulo, devemos entender que estamos vendo um sinal concreto da história do povo de Deus nos “campos de Piratininga”.

Luciney Martins/O SÃO PAULO

A origem da cidade de São Paulo é uma cabana construída com auxílio de indígenas, com a função de se tornar um “colégio” dos jesuítas, voltado sobretudo à evangelização desses povos, uma vez que a presença portuguesa era quase inexistente na região. Nasceu da intuição do Padre Manuel da Nóbrega, primeiro superior dos jesuítas no Brasil, que percebeu a importância de uma missão afastada da costa. A região escolhida era conhecida pelo termo indígena Piratininga, que significa “peixe a secar, após a cheia do rio”.

O colégio, oficialmente batizado como “São Paulo de Piratininga”, foi inaugurado com uma missa, em homenagem ao apóstolo, celebrada 470 anos atrás, em 25 de janeiro de 1554. Como a cabana inicial, feita de pau a pique (técnica de construção com barro, bambu e palha), com 14 passos de comprimento e 10 de largura, era muito rudimentar, coube ao Padre Afonso Brás, superior da segunda expedição missionária ao Brasil, a tarefa de projetar uma nova edificação, finalizada em 1556. Construída em taipa de pilão, com a ajuda do líder indígena Tibiriça, convertido ao Cristianismo, contava com espaços distintos para a escola e a igreja.

Posteriormente, a igreja foi refeita ainda mais uma vez por Lourenço Cardoso, entre os anos de 1667 e 1671. Sua torre foi construída durante a gestão do Padre Manuel Correia (1683). Contudo, como seus alicerces cederam, danificando parte da fachada da igreja, houve ainda uma reconstrução em 1694. Posteriormente, o templo passou por outra renovação na capela-mor e nos altares entre 1741 e 1745.

Lições que vem das origens. Dois aspectos chamam a atenção nessa origem da cidade de São Paulo. O primeiro, amplamente lembrado, é São Paulo ser, provavelmente, a única grande cidade do mundo que nasceu a partir de uma “escola”. O segundo, menos percebido, altamente contraditório, é que os primeiros destinatários dessa empreitada eram os povos indígenas, que acabariam sendo dizimados na região.

O local escolhido tinha importância estratégica como ponto de apoio para as expedições que se aventurassem pelo interior do Brasil. Um abrigo relativamente seguro para os europeus que, afastando-se do litoral, subissem a serra e desejassem buscar riquezas no interior do continente. Essa localização estratégica pode ser percebida até hoje por quem percorre o seu estacionamento atual. Dali se descortina, mais abaixo, toda a zona Leste de São Paulo. Era um local ideal para uma construção protegida, dado fundamental para quem estaria sujeito a ataques hostis. De fato, em 1562, poucos anos depois da sua fundação, a vila foi atacada por grupos indígenas contrários à presença europeia, num episódio conhecido por “cerco de Piratininga”. O confronto poderia ter resultado num precoce desaparecimento do que hoje é a maior metrópole da América do Sul, se não fosse a vitória dos indígenas liderados por Tibiriçá, favoráveis aos jesuítas.

Jesuítas versus bandeirantes. Durante os anos que se seguiram, os padres da Companhia de Jesus se dedicaram cada vez mais não só à “conversão das almas”, mas também à defesa da vida e dos direitos dos povos indígenas, cada vez mais ameaçados pelos portugueses. A situação se agravou à medida que a Santa Sé apoiou as reivindicações dos jesuítas e a Coroa portuguesa baixou decretos que ampliavam a proteção dada aos indígenas pelos religiosos. Em 1640, os jesuítas foram pela primeira vez expulsos da Capitania de São Paulo e, consequentemente, de seu colégio em São Paulo. Só voltaram 13 anos depois, com restrições a suas atividades em defesa dos índios e encontrando suas instalações bastante danificadas.

A complexa e conflitiva relação entre povos indígenas, colonos de origem europeia e jesuítas perduraria por décadas. Os bandeirantes viam nas populações indígenas que viviam nas missões jesuíticas uma fonte para a captura de trabalhadores já adestrados nas práticas europeias, que poderiam ser vendidos como escravos para os proprietários ricos do litoral. Os jesuítas buscaram usar da influência da Igreja na coroa portuguesa para proteger suas comunidades, mas o conflito permaneceu e culminou com a expulsão da Companhia de Jesus, determinada pelo Marquês de Pombal, em 1759.

Em todo o período colonial, São Paulo não foi uma terra rica. A vila, e a cidade que dali surgiria, só viria a se enriquecer cerca de três séculos depois de sua fundação, com o ciclo do café. Assim, enquanto as igrejas europeias construídas no período se caracterizavam pela exuberância barroca, aqui os prédios religiosos eram simples e sóbrios, refletindo a carência de recursos. De modo similar, as imagens religiosas produzidas nos séculos XVIII e XIX, conhecidas como “paulistinhas”, por serem tipicamente paulistas, caracterizam-se pela utilização do barro cozido em vez da madeira e da simplificação dos traços. O artista plástico Cláudio Pastro, especialista em arte sacra, observava que essas imagens tinham um aspecto hierático, uma certa rigidez e ausência de expressividade geralmente indicativa de respeito à divindade, comum nas obras da Antiguidade e do período gótico, diferente do maneirismo predominante nas imagens barrocas.

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Os confrontos entre Igreja e Estado. As relações entre a Igreja Católica, com suas múltiplas facetas e comunidades religiosas, e o Estado não foram sempre de cooperação e apoio, como fazem crer certas leituras. O padroado régio, sistema em que a Coroa apoiava e financiava as atividades da Igreja, que perdurou tanto no período colonial quanto no imperial, criava graves problemas de cerceamento e até desvios na sua missão e em seu testemunho.

Com a expulsão da Companhia de Jesus, em 1759, todos os seus bens foram confiscados e seu colégio em São Paulo foi convertido em Palácio dos Governadores. A construção foi reformada, visando à sua nova finalidade, e a sobriedade do estilo jesuítico foi perdida com a inclusão de elementos arquitetônicos neoclássicos, ao gosto da época.

O retorno dos jesuítas ao Brasil aconteceu a partir de 1843. Contudo, nessa época, os bens confiscados à Companhia não foram devolvidos. Em 1896, eram administrados pelo Bispado de São Paulo, mas a construção no centro da cidade ainda abrigava um órgão público. Nesse ano, parte do teto do edifício desabou durante uma tempestade e, mediante um acordo entre o governo da província e o Bispado, a igreja foi demolida e não reconstruída. O altar-mor foi levado para a Igreja do Imaculado Coração de Maria, localizada na Rua Jaguaribe, no bairro de Higienópolis, em São Paulo, pertencente à Congregação dos Missionários Claretianos, e precisou ser adaptado ao espaço menor que lhe foi destinado, sendo que várias partes se perderam porque não puderam ser instaladas.

O Pateo do Collegio atual. Os bens confiscados à Companhia de Jesus em 1759, na cidade de São Paulo, só foram restituídos em 21 de janeiro de 1954, por ocasião das comemorações do IV Centenário da cidade pelo então governador Lucas Nogueira Garcez. Pelo ato de restituição, caberia aos jesuítas “construir um Colégio e Igreja, ‘casa de Anchieta’, onde seria organizado um Museu Colonial, manutenção de cursos gratuitos e atividades culturais e conservação das relíquias remanescentes da construção anterior (parede de taipa, cripta)”. A nova instituição foi denominada Pateo do Collegio, na grafia do português antigo.

A igreja, templo, do período colonial, portanto, já não existia mais. Fora vítima dos percalços políticos que acompanharam a história da Igreja, povo de Deus, ao longo da história da cidade. O edifício que conhecemos hoje foi construído nos anos recentes, ainda que procurando rememorar o estilo da construção colonial. Foi inaugurado com uma missa celebrada em 1979. Em 2009, a Companhia de Jesus, por meio do seu provincial, Padre Carlos Palacios, e do diretor do Pateo do Collegio, Padre Carlos Alberto Contieri, iniciou uma nova recomposição de seu espaço interno, que ficou a cargo do artista sacro Cláudio Pastro.

Nesse trabalho, Pastro não procurou refazer a igreja do passado, no que seria uma imitação extemporânea da arquitetura sacra colonial paulista. Buscou, isso sim, utilizar elementos arquitetônicos que rememorassem a sua história, como o arco do presbitério, com azulejos dourados, relembrando o esplendor barroco, e os azulejos em branco e azul, típicos da arquitetura colonial portuguesa. Sua ideia era a de mostrar uma Igreja, povo de Deus, viva, que cria o novo com olhos atentos à riqueza e às dores do passado.

Agradecemos a todos aqueles que trabalham no Pateo do Collegio, e que direta ou indiretamente ajudaram na elaboração deste Caderno, nas pessoas de seu diretor, Pe. Carlos Alberto Contieri, SJ, e da historiadora Larissa Maia Artoni.

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