O Cristo crucificado na arte de Cláudio Pastro

As obras sacras de Cláudio Pastro nos mostram sua força educativa e espiritual, ajudando-nos
a penetrar no mistério pascal por meio da contemplação do Cristo crucificado.

Por Hilda Souto* e Márcio Luiz Fernandes**

Desenho a lápis grafite em papel sulfite, sem data.
Fonte: Acervo Mosteiro Nossa Senhora da Paz

Cláudio Pastro (1948-2016), artista sacro responsável pelo projeto iconográfico interno do Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, buscou resgatar as fontes da arte cristã primitiva em sua trajetória artística, impulsionado pelas decisões do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965).

Os trabalhos desta grande Assembleia eclesial foram iniciados justamente com o tema da liturgia que conforme afirma Joseph Ratzinger (Teologia da Liturgia: o fundamento sacramental da existência cristã. Brasília: Edições CNBB, 2019) “colocava inequivocamente no centro a primazia de Deus (…) antes de tudo Deus e se diz isso iniciando-se com a liturgia”. A Sagrada Escritura foi redescoberta e deveria questionar e plasmar a vida do cristão e da comunidade.

A arte que brotou dessa abertura da Igreja foi essencialmente uma arte mistagógica, ou seja, aquela capaz de favorecer o encontro com o Mistério e conduzir o fiel para o centro da fé cristã, que é a Páscoa. Para Pastro, esta realidade representava a necessidade de propor uma imagem pascal de Cristo, na totalidade do seu mistério, como pode ser observado pela análise de duas obras suas, uma do ano de 1975 e a outra, um desenho a lápis grafite, sem data.

Cristo orante na cruz. No princípio de sua carreira, Cláudio Pastro adotou figuras com olhos bem abertos, inclusive para o Cristo crucificado. Ele parece vivo! O crucificado está em uma atitude orante e quase despido, lembrando o baixo relevo da porta em madeira da Basílica de Santa Sabina, em Roma, do século V.

O conjunto das três figuras preenche o espaço. O quadrado é, por excelência, o símbolo do que é terreno, como os quatro pontos cardeais. A cena é o limiar de transição entre a vida terrena de Jesus e a consumação de sua morte. Os pés e as mãos representam a carne que Cristo assumiu. O Cristo no centro aponta para as figuras laterais: Maria, sua mãe, e o discípulo João. Ele, o crucificado, diz para sua mãe: “Mulher, eis aí o teu filho”. Depois, diz ao discípulo: “Eis aí a tua Mãe” (cf. Jo 19, 26-27). As mãos de Maria e João, espalmadas, consentem a entrega e a filiação. O centro da imagem coincide com o ventre da figura principal, que é o Cristo. Sua cruz é símbolo que une e gera.

Tudo está consumado! (Jo 19, 30). Reprodução a partir de originais em couro no formato de cartões postais, 1975. Fonte: Hilda Souto.

Cristo, entregue, esvaziado de si. Este desenho a lápis de grafite de Pastro difere do que o artista realizou em sua obra pública. O que se vê é uma figura preenchida por insistentes traços pretos. A ausência de detalhes não traz o vigor dos olhos, pés e mãos da figura anterior. Nota-se uma preocupação com o desenho do corpo, livre da anatomia, mas na materialização da carne e de um sofrimento aceito. É um Deus feito homem. Os braços estendidos na horizontal formam uma exata cruz com relação ao restante do corpo, e a cabeça, inclinada, não o declara morto. Parece ainda vivo e está sereno. A cruz é levemente sugerida, mas o que choca é o corpo nu, representado com essencialidade. Segundo J. Plazaola (Historia y sentido del arte Cristiano. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1996), o artista se entrega a um momento de “oração figurativa” em vez de catequese ou exposição doutrinária. O branco do papel realça o “emudecimento do Logos como uma autodeclaração que devemos entender como a humildade do seu rebaixamento” (Balthazar, H. U. Teología de los tres dias: el mistério pascual. Madrid: Ediciones Encuentro, 2000). Não é um Cristo sofredor, mas um Cristo entregue, uma figura completamente esvaziada de si, evidenciada por sua configuração esquelética. Cirilo de Jerusalém compara o despojamento das vestes dos catecúmenos à nudez de Cristo na cruz (São Cirilo de Jerusalém. Catequeses Mistagógicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020).

A theologia gloriae e a theologia crucis. Balthazar (op. cit.), em seu comentário sobre a doutrina da kénosis, afirma que, com seu rebaixamento, Deus não deixa de lado sua divindade, mas a confirma porque, diferentemente dos outros deuses, Ele mesmo se rebaixou. Em seu Filho, feito homem, não há nenhum limite ou perda de sua condição divina, porque seu rebaixamento obediente até a morte na cruz é idêntico à sua exaltação na condição de Kyrios. Portanto, conclui Balthazar, a theologia crucis não teria sentido sem a theologia gloriae e, em sentido inverso, a theologia gloriae não subsiste com uma theologia crucis abstrata.

Para Pastro, cuja obra se vincula ao mistério da encarnação, morte e ressurreição de Jesus, é o rebaixar-se de Deus que nos faz à sua imagem e semelhança. Ele só poderia nos salvar sendo um de nós. Jesus Cristo, entre gue à sua nudez, é o homem livre de amarras, ao contrário de Adão, que estava nu e precisou se cobrir diante d’Aquele que o havia criado. Cristo é o Novo Adão. Nesse sentido, Pastro revela com seus traços essenciais o Cristo nu como símbolo do verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Nas suas palavras: “O madeiro da cruz é a árvore da vida que Cristo nos conquistou reabrindo o Paraíso”.

Esse artigo é baseado em SOUTO, H. & FERNANDES, M. l. A imagem do Cristo crucificado na arte de Cláudio Pastro: uma investigação a partir do acervo pessoal do artista. Cuestiones Teológicas, 50(114): 1-19, 2023.
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Agradecemos ao Mosteiro Nossa Senhora da Paz, que permitiu o uso da imagem de seu acervo exibida neste texto.
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Artista plástica, doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
 (PUC-PR),
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** Professor adjunto no Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC-PR e da Faculdade Claretiana Studium Theologicum de Curitiba (PR).
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