A vida é hevel, um sopro, afirma o texto hebraico do Eclesiastes, numa tradução melhor que “vaidade das vaidades” (Ecl 1, 2) do latim vanitas. Hevel – sopro – exprime algo que é evanescente, que não se pode agarrar, nem muito menos governar. Hevel é uma palavra muito usada na Bíblia. “São um sopro (hevel) os filhos de Adão” (Salmo 62, 10). “O homem é como um sopro, os seus dias são como sombra que passa” (Salmo 144, 4). “Eu me desfaço, não viverei ainda muito. Deixa-me, porque os meus dias são um sopro”, lamenta Jó (7, 16).
O Eclesiastes usa o termo hevel não no sentido moral ou metafísico, mas com uma acepção muito concreta, como a descrever a percepção, o sentido físico, do tempo que passa muito rápido debaixo do sol. Significa o tempo concreto da vida: tudo passa como um sopro. Por isso, preste atenção! Não se trata de uma visão pessimista da vida. É a constatação que na vida terrena, sob o sol, nada é completo, pleno e nem nos sacia totalmente. Por isso, não podemos nos colocar no lugar de Deus, não vemos tudo nem compreendemos a totalidade do real. A condição do ser humano aqui na terra é contingente. O autor bíblico é um homem realista, com o pé no chão, que não tem a pretensão de superar os confins da sua humanidade, mas busca refletir sobre a sua existência terrena (Capítulos 1 e 2).
As palavras no início do Capítulo 3 do Eclesiastes são um resumo do que este livro sapiencial quer dizer: “Tudo tem seu tempo, há um tempo para cada propósito debaixo do céu”. Descobrimos que o tempo ali é outro… Nós conhecemos bem o tempo newtoniano (Δt), pois aprendemos a raciocinar de acordo com o implacável e preciso horário do relógio. O relógio é um modo de dar “espaço” ao tempo. O tempo se torna uma “coisa”, e assim parece tangível.
A. Heschel, em O Schabat (Editora Perspectiva, 2018), diz que a modernidade privilegiou o espaço em detrimento do tempo, mas ganhando “espaço”, o ser humano diminuiu a si mesmo: “A civilização técnica é a conquista do espaço pelo homem. É um triunfo frequentemente alcançado pelo sacrifício de um ingrediente essencial da existência, isto é, o tempo. Na civilização técnica nós gastamos tempo para ganhar espaço. Intensificar nosso poder no mundo do espaço é o nosso maior objetivo. No entanto, ter mais não significa ser mais. O poder que alcançamos no mundo do espaço termina abruptamente na fronteira do tempo. O tempo, porém, é o coração da existência […] Todos nós ficamos enfeitiçados pelo esplendor do espaço, pela grandeza das coisas do espaço […] A realidade, para nós, é coisa e consiste em substâncias que ocupam espaço; mesmo Deus é concebido pela maioria de nós como uma coisa. O resultado de nossa coisificação é a cegueira a toda realidade que deixa de se identificar como uma coisa, como um fato real. Isso é óbvio em nosso entendimento do tempo, o qual, sendo desprovido de coisa e de substância, nos parece como se não tivesse realidade”.
Não se trata de desprezar a importância do espaço, do visível, do material, do tocável, mas de denunciar a hipervalorização do espaço em detrimento do tempo. O espaço é mensurável, está sob nosso controle visual, pode ser abarcado pelo olhar. O tempo não. A única maneira de medi-lo é reduzi-lo ao espaço e ao movimento que nele ocorre. Essa diferença se vê ao compararmos o espaço sagrado (necessário e de grande ajuda) com a experiência do sagrado que uma pessoa faz, que é uma experiência interior que se dá num tempo, em um momento, mas que não ocupa um “espaço”.
Na Bíblia, a temporalidade é valorizada em sua forma linear, dentro da dimensão histórica. Uma história que caminha para um cumprimento. Por isso, para o mundo bíblico o tempo não representa a inconsistência do ser e seu dissolver-se em um fluxo perene, mas está impregnado com um anseio de completude. “Para Israel, os acontecimentos singulares do tempo histórico foram espiritualmente mais significativos do que os processos repetitivos no ciclo da natureza (para as festividades anuais), muito embora o sustento físico dependesse dessa última. Enquanto as divindades de outros povos estavam associadas aos lugares ou coisas, o Deus de Israel era o Deus dos acontecimentos: o Redentor da escravidão, o Revelador da Torá, manifestando-se a Si Mesmo em acontecimentos da história, mais do que em coisas ou lugares. Assim, a fé no incorpóreo, no inimaginável, nasceu.” (HESCHEL, A. Op. cit.).
O Papa Francisco dirá que o tempo é superior ao espaço (Evangelii gaudium, EG 222-225) e afirma que “dar prioridade ao tempo significa ocupar-se de iniciar processos mais do que possuir espaços” (EG 223). Relembra-nos as palavras do Beato Pedro Fabro: “O tempo é o mensageiro de Deus” (EG 171). Por isso, a plenitude da vida de uma pessoa e do mundo todo só pode ser alcançada por meio de uma gradualidade e de um respeito aos processos que constroem os povos, e precisam ser vividos pouco a pouco e dentro da dimensão da paciência. “O espaço cristaliza os processos; o tempo, ao contrário, nos projeta para o futuro e nos impulsiona a caminhar com esperança” (Lumen fidei, LF 57).
Em busca do tempo oportuno. Os gregos usavam três termos diferentes, kronos, aiòn e kairòs, para designar o tempo. Kronos era usado para descrever a sucessão de instantes, o tempo na sua sequência cronológica e quantitativa, na mitologia grega era representado como um gigante, filho de Urano e Gaia, que devorava seus próprios filhos até ser derrubado por Zeus. Aiòn expressava a temporalidade da vida, seus ciclos, intervalos e percalços. Representava a dimensão da consciência humana irredutível a qualquer lógica somativa e linear. Kairòs, o último filho de Zeus, era representado como um menino com asas nos pés, em constante movimento, com um tufo de cabelo na testa e nuca raspada para indicar a dificuldade em agarrá-lo. Ele segurava uma haste na qual uma balança repousava. Representava a hora certa, o tempo oportuno. Indicava o momento propício, adequado, que devia ser apreendido no rápido instante que passa, o tempo “presente”, em relação ao qual uma capacidade vigilante e atenta permite compreender melhor o desenvolvimento do futuro. É no tempo que se joga a liberdade humana, no qual a inteligência e o reconhecimento dos sinais pode determinar a felicidade no futuro.
No hebraico, o tempo cronológico (kronos) e o tempo oportuno (kairòs) são expressos pela palavra zeman e et respectivamente. “Há um momento (zeman) para tudo e um tempo (oportuno – et) para todo propósito debaixo do céu. Tempo (et) de nascer, e tempo (et) de morrer; tempo (et) de plantar, e tempo (et) de arrancar a planta. Tempo (et) de matar e tempo (et) de curar; tempo (et) de destruir, e tempo (et) de construir” (cf. Ecl. 3, 2-8)
Para cada tempo que se pode medir (zeman), há um tempo (et) adequado, oportuno. São 14 antíteses que englobam todas as circunstâncias às quais somos chamados a aderir e a viver plenamente. O Eclesiastes mostra que cada realidade foi feita por Deus com o seu contraste e complementariedade, tudo é dual e tem o seu oposto; esta é a harmonia.
Toda coisa é bela no seu devido tempo. “As coisas do espaço expõem uma independência ilusória. As coisas criadas ocultam o Criador. É na dimensão do tempo que se encontra a Deus, em que o homem torna-se ciente de que cada instante é um ato da criação, um Começo, abrindo novas estradas para realizações finais. O tempo é a presença de Deus no mundo do espaço, e é no tempo que somos capazes de sentir a unidade de todos os seres. A criação, somos ensinados, não é um ato que ocorreu uma vez no tempo, uma vez e para sempre. O ato de trazer o mundo à existência é um processo contínuo. O chamado de Deus trouxe o mundo à existência, e este chamado prossegue. Existe este momento presente porque Deus está presente. Cada instante é um ato de criação. Um momento não é terminal, mas um lampejo, um sinal do Começo. O tempo está em perpétua inovação, um sinônimo para a criação contínua. O tempo é a dádiva de Deus ao mundo do espaço” (HESCHEL, A. Op. cit.).
“Tudo o que Ele fez é apropriado ao seu tempo (et). Também colocou no coração do homem o conjunto do tempo (em hebraico olam que significa eternidade, universo), sem que o homem possa atinar com a obra que Deus realiza desde o princípio até o fim” (Ecl 3, 11).
Embora o coração do ser humano possua essa sombra de eternidade, pois não conseguimos ter a visão do todo, Deus fez cada coisa bela e no momento oportuno (pois o instante para Deus é et e não apenas zeman). Nossas sensações e percepções não são tudo. Além das coisas que vemos, ouvimos, tocamos ou sentimos, que estão na dimensão do espaço (no caso, sufocante…), há uma outra dimensão: o tempo. Vivamos essa dimensão, víamos o et, com alegria.
Para não ficarmos presos apenas à dimensão do espaço sufocante, façamos uma pausa para reconhecer a eternidade do instante, e dar tempo ao tempo. Peçamos ao Senhor a graça de não perder as ocasiões que Ele nos dá para parar, dar-nos conta da dimensão do tempo, e poder viver, o que se chama no final das contas, amor.