Joseph Ratzinger explicitou sua visão sobre o diálogo inter-religioso num encontro com o Rabino Leonard Sztejnberg ocorrido na Academie sciences morales et politiques, publicado em Communio: International Catholic Review, em 1998. Os trechos aqui selecionados do texto mostram um pensador aberto ao encontro que busca a verdade, imbuído de uma visão humilde de diálogo. Nas suas palavras “a kenosis de Deus [seu esvaziamento no sacrifício de Cristo] é o lugar onde as religiões podem entrar em contato sem reivindicações arrogantes de dominação”.
Discutimos hoje o ecumenismo inter-religioso no contexto de um mundo que, ao mesmo tempo que se aproxima cada vez mais, tornando-se cada vez mais um único teatro da história humana, é convulsionado por guerras, dilacerado por crescentes tensões entre ricos e pobres e radicalmente ameaçado pelo mau uso do poder tecnológico do homem sobre o planeta. Essa tripla ameaça deu origem a um novo cânone de valores éticos, que resumiria a principal tarefa moral da humanidade neste momento da história em três ideias: paz, justiça e integridade da criação. Embora não sejam idênticas, religião e moralidade estão inseparavelmente ligadas. Portanto, é óbvio que, em um momento no qual a humanidade adquiriu a capacidade de destruir a si mesma e o planeta em que vive, as religiões têm uma responsabilidade comum de superar essa tentação […]
A questão que se coloca, no entanto, é: como isso pode ser feito? Dada a diversidade das religiões, dados os antagonismos entre elas que muitas vezes se inflamam mesmo em nossos dias, como podemos nos encontrar? Se é que isso é possível, qual tipo de unidade pode haver? […]
As religiões não possuem, a priori, o conhecimento do que serve à paz aqui e agora; de como construir a justiça social dentro e entre os Estados; de como melhor preservar a integridade da criação e cultivá-la responsavelmente em nome do Criador. Essas questões têm de ser trabalhadas pela razão, num processo que inclui sempre o livre debate entre opiniões diversas e o respeito pelas diferentes abordagens. Sempre que um moralismo religiosamente motivado evita esse pluralismo, muitas vezes irredutível, declarando que um caminho é o único correto, a religião se torna uma ditadura ideológica, cuja paixão totalitária não constrói a paz, mas a destrói […] Evidentemente, a recusa em transformar a religião em uum moralismo político não muda o fato de que a educação para a paz, a justiça e a integridade da criação está entre as tarefas essenciais da fé cristã e de todas as religiões — ou que o ditado “pelos seus frutos os conhecereis” pode ser aplicado ao seu desempenho […]
A pobreza é necessária para o diálogo e a busca da verdade. A kenosis de Deus [seu esvaziamento no sacrifício de Cristo] é o lugar em que as religiões podem entrar em contato sem reivindicações arrogantes de dominação. O Sócrates platônico ressalta a conexão entre verdade e vulnerabilidade, verdade e pobreza, especialmente na Apologia e em Criton (Coimbra: Edições 70, 2018). Sócrates é credível porque, ao “tomar partido de deus”, não busca nem posição nem posses, mas, pelo contrário, é levado para a pobreza e, finalmente, para a posição de acusado. A pobreza é verdadeiramente a forma divina pela qual a verdade aparece: na sua pobreza, pode exigir obediência sem alienação.
Três observações sobre diálogo e verdade. Resta uma última pergunta: o que tudo isso significa concretamente? O que se pode esperar de que tal concepção do Cristianismo contribua para o diálogo inter-religioso? […] Gostaria de fazer três observações:
1. As religiões só podem encontrar-se umas com as outras aprofundando-se na verdade, não a abandonando. Nem o ceticismo, nem o puro pragmatismo nos unem. Ambos apenas nos abrem para as ideologias, que se tornam mais autoconfiantes. A renúncia à verdade e às suas convicções não eleva o homem, mas o deixa submetido ao cálculo utilitarista e rouba-lhe a grandeza. O que é necessário, entretanto, é a reverência pela crença do outro, juntamente com a disposição de buscar a verdade no que considero estranho – uma verdade que me diz respeito e que pode me corrigir e me levar adiante. O que é necessário é a vontade de olhar por trás do que pode parecer estranho, a fim de encontrar a realidade mais profunda que ali se esconde. Eu também devo estar disposto a deixar minha compreensão estreita da verdade ser quebrada, a aprender melhor minhas próprias crenças, entendendo o outro e, dessa forma, me deixar aprofundar no caminho para Deus, que é maior – na certeza de que eu nunca possuirei totalmente a verdade sobre Deus e sou sempre um aprendiz, um peregrino cujo caminho para ele nunca está no fim.
2. Embora devamos sempre buscar o positivo no outro, devemos também nos ajudar a encontrar a verdade. Por isso, não podemos nem devemos prescindir de críticas. A religião contém, por assim dizer, a preciosa pérola da verdade, mas também a esconde continuamente e corre sempre o risco de perder a sua própria essência. A religião pode adoecer e tornar-se um fenômeno destrutivo. Pode e deve levar à verdade, mas também pode nos afastar dela […] Pode ser relativamente fácil para nós criticar a religião dos outros, mas também devemos estar prontos para aceitar críticas a nós mesmos, à nossa própria religião […] Karl Barth estava certo ao afirmar que mesmo a religião dos cristãos pode adoecer e se tornar superstição […] A religião concreta na qual os cristãos vivem sua fé deve ser incessantemente purificada pela verdade […]
3. O diálogo, no qual ajudamo-nos uns aos outros a sermos melhores cristãos, judeus, muçulmanos, hindus e budistas não pode substituir a atividade missionária. Tal substituição seria uma completa falta de crença. Sob o pretexto de promover o melhor do outro, deixaríamos de levar a sério a nós mesmos e ao outro e acabaríamos renunciando à verdade. A resposta, penso eu, é que a missão e o diálogo não devem continuar a ser antíteses, mas devem penetrar-se mutuamente. O diálogo não é uma conversa aleatória, mas visa à persuasão, à descoberta da verdade. Caso contrário, é inútil. Por outro lado, os futuros missionários não podem mais pressupor que estão dizendo a alguém, até então desprovido de qualquer conhecimento de Deus, no que ele tem que acreditar. Esta situação pode, de fato, ocorrer e talvez ocorra com frequência crescente em um mundo que em muitos lugares está se tornando ateu. Mas entre as religiões, encontramos pessoas que por meio de sua religião ouviram falar de Deus e tentam viver em relação com Ele. A pregação deve, portanto, tornar-se um evento dialógico […] O pregador não é simplesmente um doador, mas também um receptor.