
Nos últimos meses, fomos bombardeados por avanços da inteligência artificial (IA) com uma velocidade que, confesso, não esperava testemunhar. Essa aceleração me fascinou, mas também me deixou deslocado, e, em certo ponto, desiludido. Saber que tudo vai mudar em poucos anos é por si só um grande motivo de incômodo. Vejo esse mal-estar geral em todos os lugares, entre amigos, colegas e estranhos. Perguntas como se teremos empregos, como vamos aprender ou o que serão essas megacorporações, aparecem com fre-quência. São todas questões urgentes e pertinentes.
Mas quero falar de uma inquietação menos visível, que veio antes de tudo isso: um sentimento de desilusão, que revelou algo mais profundo, pois me fez perguntar, de novo, o que significa o ser humano. Diante da fluidez com que algoritmos tomam decisões, sintetizam linguagem, reconhecem padrões e, em certos aspectos, nos superam, esta pergunta inevitável aparece: O que resta do humano quando a inteligência não é mais exclusividade nossa?
Nesse sentido, o advento da IA não é apenas um salto técnico, mas uma provocação existencial. Essa conversa pode soar estranha, porque há muito tempo deixamos de perguntarmo-nos o que significa “ser no mundo”. A técnica contemporânea, da qual a IA talvez seja o ápice, nos treina a ver tudo, inclusive a nós mesmos, como engrenagens que precisam ser otimizadas. O discurso da eficiência acaba entrando como ajuda e saindo como doutrina. Até nossa vida íntima começa a obedecer à lógica do desempenho.
Foi o que senti quando recebi uma mensagem de uma amiga após semanas sem nos falarmos por causa de um desentendimento profissional. Estava claramente escrita pelo ChatGPT. Era uma tentativa de reconciliação. Eu teria preferido um erro com cheiro de gente a uma perfeição com gosto de máquina. O silêncio teria sido mais honesto. Ao oferecer sempre a resposta pronta, polida e funcional, a tecnologia não está impedindo o humano de habitar o intervalo da dúvida e da abertura?
É o que Byung-Chul Han chama de colapso da negatividade, a perda do intervalo, da hesitação, da possibilidade de errar, resistir e, finalmente, aprender. Como podemos, então, preservar-nos da diluição da experiência humana, ao gerar um mundo excessivamente funcional, sem espaço para o erro, o silêncio e a contemplação?
Liberdade, responsabilidade e a transferência da vontade. Até hoje, acreditávamos que nossa consciência — nossos sentimentos, desejos, opiniões — era o centro do universo ético e político. Mas, em um mundo em que algoritmos sabem mais sobre nós do que nós mesmos, essa base começa a ruir e se instala uma ferida existencial radical: perdemos até mesmo o direito de sermos os melhores intérpretes da nossa vida. A IA pode prever desejos, estados mentais e comportamentos com base em dados, minando a ideia da autonomia subjetiva. Nesse cenário, deixamos de ser autores da nossa própria história para nos tornarmos nós de dados entre fluxos algorítmicos. Ao transferirmos decisões para sistemas, não estamos também abrindo mão, pouco a pouco, da própria capacidade de querer?
O impacto existencial da IA talvez esteja menos naquilo que ela faz, e mais no modo como ela nos espelha. Ao revelar nossas limitações, ela nos empurra à consciência daquilo que só nós podemos fazer — sofrer, amar, cuidar, perdoar, criar sentido, e, sobretudo, responder ao outro.
A vida humana se constitui no risco da liberdade, não na segurança do cálculo. A responsabilidade não é programável. Não somos os mais rápidos, mas talvez sejamos os únicos capazes de perguntar: Para quê? Com quem? Em nome de quê? Ao sermos confrontados com uma inteligência que não sofre, não ama, não morre, somos, paradoxalmente, chamados a assumir com mais clareza o mistério de sermos seres encarnados, finitos, desejantes e responsáveis.
Afinal, nosso lugar como seres humanos talvez nunca tenha sido o de senhores da razão, mas sim de guardadores do sentido.