O legado de Bento XVI sobre política, justiça e amor

Em seu magistério, Bento XVI reafirma o princípio do amor entrelaçado à verdade, como critério orientador de ação moral para a construção de ordens sociais justas no mundo, fundamentadas nos valores da justiça e o bem comum (Caritas in veritate, CV 6). O amor ao próximo é um amor concreto e comprometedor que envolve não apenas o aspecto individual, mas social, posto que o homem não vive em isolamento, mas em contínua inter-relação. Na Deus caritas est (DCE), resume a relação própria entre justiça e amor em dois pontos essenciais: (1) o dever da política é a justa ordem da sociedade e do Estado e (2) o amor é necessário à justiça (DCE 26ss).

Na concepção de Bento XVI, como em toda a Doutrina Social católica, a construção de uma sociedade justa está nas mãos da política. Assim, o primeiro ponto acima traz um retorno à ideia agostiniana de que, sem a justiça, o Estado se reduziria a “um bando de salteadores”, pois a política não é mera técnica administrativa e de elaboração e aplicação de leis. Sua origem e seu fim têm natureza ética: a justiça. Contudo, o Estado não é o gigante responsável pela solução de todos os problemas humanos e sociais, mas aquele que apoia iniciativas particulares das mais diversas forças da sociedade, que surgem de seu próprio meio, estão próximas ao cidadão e conhecem suas reais necessidades.

A Igreja se apresenta como uma destas grandes forças da sociedade, não porque pretende imiscuir-se em assuntos de competência estatal, mas porque está a serviço da verdade e da dignidade do homem e, nesse sentido, preocupa-se em orientar sua vocação (cf. Entrevista durante o voo para o Brasil, 09/05/2007). Ela trabalha no sentido de despertar as consciências sobre o bem, a justiça e o amor, para a construção de estruturas justas.

Todo cidadão é chamado a colaborar para a construção de uma sociedade mais justa. Contudo, como lembra o Catecismo da Igreja Católica (CIC 407), “Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da ação social e dos costumes”. Nas palavras de Bento XVI, “o dado empírico é que existe uma contradição no nosso ser. Por um lado, cada homem sabe que deve fazer o bem e intimamente até quer fazê-lo. Mas, ao mesmo tempo, sente também o outro impulso para fazer o contrário, para seguir o caminho do egoísmo, da violência, para fazer só o que lhe apraz, mesmo sabendo que assim age contra o bem, contra Deus e contra o próximo” (Audiência Geral, 03/12/2008). O mal pode ser praticado por qualquer um que se veja imbuído de um motivo egoísta ou se disponha a buscar a verdade. Por isso, para poder operar retamente, a razão deve ser continuamente purificada, porque sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado (DCE 28). E aqui surge a necessidade de falarmos da justiça.

Chega-se aqui ao segundo ponto da relação entre amor e justiça de Bento XVI: não se pode falar de amor sem antes falar de justiça, ou seja, o amor pressupõe a justiça, porque não há como dar ao outro algo além, se ele está privado até mesmo do que é seu por direito. Portanto, a justiça é o primeiro passo do amor. Contudo, como pregou no Angelus,, em fevereiro de 2007, o mandamento de amar até o inimigo não consiste em ser conivente com o mal, segundo uma falsa interpretação do “oferecer a outra face”. E por qual razão Jesus pede para amar os próprios inimigos, um amor que excede as capacidades humanas? perguntou-se. É que Jesus sabia que no mundo existe violência de mais, injustiça de mais, situações que não podem ser solucionadas de outro modo a não ser com algo mais. Nas suas palavras: “Este ‘algo mais’ vem de Deus: é a sua misericórdia, que se fez carne em Jesus e que sozinha pode ‘inclinar’ o mundo do mal para o bem, a partir daquele pequeno e decisivo ‘mundo’ que é o coração do homem.” (Angelus,18/02/2007).

Infelizmente, a palavra amor contempla inúmeras realidades, nem sempre análogas ou sequer complementares, que podem até mesmo ser opostas, como quando se diz matar por amor. De todo modo, a Igreja ensina que a vocação do homem é o amor ensinado por Jesus aos seus discípulos: o amor ao próximo, seja quem for, mesmo que seja seu inimigo, seu ofensor. Esse é o amor que abunda nos escritos neotestamentários e que é descrito com a palavra ágape.

O amor que se estende até o inimigo é a magna carta da não violência cristã, que não é mera estratégia, mas um modo de existir no mundo, a maneira de ser de quem está convicto do amor de Deus e não tem medo de enfrentar o mal somente com as armas do amor e da verdade (Angelus,18/02/2007).

A Igreja, em relação à política, trabalha no sentido de despertar as consciências sobre o bem, a justiça e o amor, para a construção de estruturas justas. Portanto, tratemos de quebrar a corrente do mal, do ódio, da vingança e da injustiça, porque se a justiça induz a dar a cada um o que é seu, o amor induz a dar mais, a dar de si próprio, a fazer renúncias, a perdoar. É assim que Deus age conosco e espera que façamos entre nós.

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