Os Manuscritos do Mar Morto e o Cristianismo

Sem a leitura reflexiva e orante da Bíblia, é impossível aprofundar-se no Cristianismo. Por isso, a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, que mostram a fidelidade da Bíblia aos textos judaicos do tempo de Jesus e ajudam a entender os tempos evangélicos, é uma das maiores contribuições da arqueologia para a fé cristã

manuscritosdomarmorto.com

A partir de 1949, um sábio do prestigioso Collège de France, André Dupont-Sommer (1900-1983), tornou-se o arauto de uma aproximação do Cristianismo com a seita judaica dos Essênios, prováveis autores dos Manuscritos do Mar Morto. Dava curso a uma opinião bastante difundida entre os intelectuais do século XVIII, mas servia-se dos manuscritos recém-descobertos no deserto da Judeia para explorar a ideia de um “Mestre de Justiça”, figura importante entre os Essênios, guia supremo dos eleitos da “comunidade da nova aliança”. Do Mestre de Justiça a Jesus de Nazaré, na concepção de muitos, apressadamente, era só um pulo. Jesus seria uma reencarnação do Mestre de Justiça, pregando a oração, a penitência, a humildade, o amor ao próximo, a castidade e a observância à Lei de Moisés, mas agora acabada, perfeita, graças às suas próprias revelações. Foi vítima das hostilidades dos sacerdotes, condenado, supliciado. Tal como o Mestre de Justiça, Jesus proferiu o julgamento sobre Jerusalém, que acabou sendo castigada, destruída. E teria fundado uma nova seita, entre as tantas que já existiam em Israel, cujos fiéis aguardavam seu retorno glorioso…

Muitas semelhanças, impossíveis de não serem percebidas. Mas a exegese é o saudável exercício da suspeição e não devemos correr o risco de leituras fundamentalistas.

Jesus e o seu tempo. O ponto de partida para uma visão mais abalizada nos sugere outro itinerário de leitura. O Judaísmo dos últimos decênios antes da era cristã era diversificado, havia tradições de mestres mais ou menos conservadores, avanços e retrocessos, práticas elitistas e populares, conflitos e revisões. Jesus e seus discípulos tiveram, portanto, um berço cultural comum que deu margem aos primeiros discursos e narrativas cristãos, quaisquer que fossem suas diferenças doutrinárias. Normal, então, que se encontrem elementos comuns, parecidos, quiçá idênticos nos ensinamentos judaicos e cristãos. Podemos identificar alguns: a escolha do deserto como elemento purificador, o cumprimento das Escrituras, a mística das bem-aventuranças, o reinado eterno e pacífico do Filho de Deus, a ceia festiva do fim dos tempos, a penitência e o perdão dos pecados, a comunhão dos santos, as obras da Lei, o perigo da carne, as noções de messianismo etc.

Claro, porém, que o Cristianismo teve uma identidade. Resumidamente, podemos dizer que Jesus fez uma opção de vida. Precisou, por isso, aproximar-se das forças vivas do Judaísmo e afastar-se do que significava “odres velhos”, “sepulcros caiados”, “observantes fundamentalistas da Lei”, “preferência mais ao ritualismo do que à misericórdia”, “manipuladores da religião”, “quem mais deseja ser servido do que servir” etc. As forças vivas da nação estavam com os pobres, os marginalizados, e foi com eles que Jesus se identificou. Optou pelas ovelhas perdidas, pela samaritana, pelos pequeninos, pela viúva, pelos famintos, pelos pecadores que desejavam a mudança de vida. E para isso não se tornou eremita, não precisou fazer prestidigitações: limitou-se a anunciar uma notícia feliz (“Evangelho”) da parte do Pai, entregar sua vida para a salvação de todos (Páscoa) e prometeu o envio do Espírito (Pentecostes) para formar uma nova comunidade, sinal de um Reino de verdade, liberdade, justiça, amor e paz. Não ofereceu receituários, deixou que a comunidade criasse sua história, sua missão, como fermento na massa.

Jesus viveu e evoluiu em contato com as correntes de ideias da sociedade da qual fez parte. Mas não foi adepto exclusivo de nenhuma delas. Foi alguém aberto a fontes renovadas de inspiração e de formulação de sua intuição central, o Reino de Deus. A obra missionária deste Mestre foi diferente de outros, “porque falava com autoridade”, não foi mero repetidor. E teve uma reverberação – por que não falar êxito? – inclusive muito rápida. Pela primeira vez, a partir da bacia do Mediterrâneo, o mundo conheceu algo de realmente “novo”: homens e mulheres, adultos e crianças, senhores e escravos, judeus e não judeus, sentavam-se juntos na mesma mesa, aceitavam ser julgados pela mesma Palavra, comiam o mesmo pão, bebiam do mesmo cálice, amavam-se fraternalmente, até os inimigos, como o Mestre lhes ensinou.

Os Manuscritos do Mar Morto e o Antigo Testamento. Os Livros Sagrados a que chamamos de Antigo Testamento, escritos por judeus e para judeus,não podem ser pirateados por ninguém. Contêm a pedagogia de Deus para formar um povo, não por qualidades excepcionais, mas porque “eram o menor de todos os povos” (Dt 7,7). Esta é a feição de Deus, a preferência pelo menor. Mas o Antigo Testamento é uma obra aberta ao desígnio de Deus – e a pedagogia de Deus tudo preparou para o envio de seu Divino Filho, encarnado na pessoa de Jesus de Nazaré, plenitude da revelação, o Messias anunciado e esperado por séculos.

Jesus consumou sua obra por meio de palavras e gestos, narrados por seus seguidores durante cerca de dois séculos. Essas narrativas foram feitas tendo o Antigo Testamento como ponto de partida, como lastro cultural, de tal modo que a leitura do Novo Testamento se torna difícil sem o conhecimento do Antigo. O Novo Testamento está todo embebido da linguagem do Antigo. Conhecer bem o Antigo Testamento ajuda a entender quem foi Jesus. Por isso, um cristão lê e estuda o Antigo Testamento, é um valor do qual não podemos abrir mão.

Não temos os originais do Antigo Testamento, obra de muitos autores, em diversas épocas e em vários lugares. Mas também não temos originais da Ilíada, da Odisseia, dos Diálogos de Platão, tratados de Aristóteles etc. Nossas Bíblias foram editadas a partir de manuscritos da Idade Média. O mais antigo e completo deles remonta ao século XI (1008), chamado Códex de Leningrado. Por isso, muitos argumentavam que se trata de um texto muito tardio. Mais de mil anos o separa do final da redação da Bíblia Hebraica. É aqui que entra a importância dos manuscritos encontrados no deserto da Judeia, há 75 anos. Como estes são datados do século II antes da era cristã, é possível fazer a comparação entre os códices medievais e as cópias anteriores à era cristã. E esta comparação revelou a extrema fidelidade na transmissão do texto bíblico, com diferenças mínimas. Daí a extrema relevância desses Manuscritos do Mar Morto.

O Cristianismo não é a religião do livro, é a vivência comunitária da Palavra de Deus, encarnada, que contém a verdade para a salvação. Uma obra que nos transmite a revelação divina, um diálogo de Deus com a humanidade (cf. Verbum Domini, VD 7). A Bíblia Sagrada não é uma obra para eruditos, para malabarismos editoriais. É voltada para os simples, dotados de abertura de espírito, para nos fazer felizes. As Igrejas e academias fazem grande esforço para oferecer boas edições, com toda exatidão e beleza, que merecem nosso estudo. Indiferença diante da Sagrada Escritura pode indicar uma civilização em vias de mediocrização.

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