Apresentamos a seguir trechos do Capítulo VII da Encíclica Fratelli tutti, do Papa Francisco, publicada em 2020, que nos ajudam particularmente a caminhar rumo à reconciliação de uma sociedade fraturada, à luz de uma cultura do encontro.
Em muitas partes do mundo, fazem falta percursos de paz que levem a cicatrizar as feridas, há necessidade de artesãos de paz prontos a gerar, com inventiva e ousadia, processos de cura e de um novo encontro […]
Recomeçar a partir da verdade. Novo encontro não significa voltar ao período anterior aos conflitos. Com o tempo, todos mudamos. A tribulação e os confrontos transformaram-nos […] A verdade é uma companheira inseparável da justiça e da misericórdia. Se, por um lado, são essenciais – as três todas juntas – para construir a paz, por outro, cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas […] De fato, a verdade não deve levar à vingança, mas antes à reconciliação e ao perdão […]
A arquitetura e o artesanato da paz. […] É preciso procurar identificar bem os problemas que atravessa uma sociedade, para aceitar que existem diferentes maneiras de encarar as dificuldades e resolvê-las. O caminho para uma melhor convivência implica sempre reconhecer a possibilidade de que o outro contribua com uma perspectiva legítima, pelo menos em parte, algo que possa ser recuperado, mesmo que se tenha equivocado ou se tenha agido mal, porque o outro nunca há de ser circunscrito àquilo que pôde ter dito ou feito, mas deve ser considerado pela promessa que traz em si mesmo, uma promessa que deixa sempre um lampejo de esperança.
Como ensinaram os bispos da África do Sul, a verdadeira reconciliação se alcança de maneira proativa, “formando uma nova sociedade baseada no serviço aos outros, e não no desejo de dominar; uma sociedade baseada na partilha do que se possui com os outros, e não na luta egoísta de cada um pela maior riqueza possível; uma sociedade na qual o valor de estar juntos como seres humanos é, em última análise, mais importante do que qualquer grupo menor, seja ele a família, a nação, a etnia ou a cultura”. E os bispos da Coreia do Sul destacaram que uma verdadeira paz “só se pode alcançar quando lutamos pela justiça por meio do diálogo, buscando a reconciliação e o desenvolvimento mútuo”.
O árduo esforço por superar o que nos divide, sem perder a identidade de cada um, pressupõe que em todos permaneça vivo um sentimento basilar de pertença […] Nas famílias, todos contribuem para o projeto comum, todos trabalham para o bem comum, mas sem anular o indivíduo; pelo contrário, sustentam-no, promovem-no. Podem brigar entre si, mas há algo que não se move: este laço familiar. As brigas de família tornam-se reconciliações mais tarde. As alegrias e as penas de cada um são assumidas por todos. Isto sim é ser família! Oh, se pudéssemos conseguir ver o adversário político ou o vizinho de casa com os mesmos olhos com que vemos os filhos, esposas, maridos, pais ou mães, como seria bom!” (Discurso no encontro com a sociedade civil na visita ao Equador).
[…] Mas os processos efetivos de uma paz duradoura são, antes de tudo, transformações artesanais realizadas pelos povos, onde cada pessoa pode ser um fermento eficaz com o seu estilo de vida diária […] Existe uma “arquitetura” da paz, na qual intervêm as várias instituições da sociedade, cada uma dentro de sua competência, mas há também um “artesanato” da paz que nos envolve a todos […]
Sobretudo com os últimos. A promoção da amizade social implica não só a aproximação entre grupos sociais distanciados a partir de um período conflituoso da história, mas também a busca de um renovado encontro com os setores mais pobres e vulneráveis […] Aqueles que pretendem pacificar uma sociedade não devem esquecer que a desigualdade e a falta de desenvolvimento humano integral impedem que se gere a paz […]
O valor e o significado do perdão. Alguns preferem não falar de reconciliação, porque pensam que o conflito, a violência e as rupturas fazem parte do funcionamento normal de uma sociedade […] Outros defendem que dar lugar ao perdão equivale a ceder o espaço próprio para que outros dominem a situação […] Outros consideram que a reconciliação seja empreendimento de fracos, que não são capazes de um diálogo em profundidade e, por isso, optam por escapar dos problemas escondendo as injustiças […]
O perdão e a reconciliação são temas de grande relevo no Cristianismo e, com várias modalidades, em outras religiões. O risco reside em não entender adequadamente as convicções dos crentes e apresentá-las de tal modo que acabem por alimentar o fatalismo, a inércia ou a injustiça, e, por outro lado, a intolerância e a violência […]
As comunidades primitivas, imersas num mundo pagão repleto de corrupção e aberrações, viviam animadas por um sentido de paciência, tolerância, compreensão. A este respeito, são muito claros alguns textos: convida-se a corrigir os adversários “com suavidade“ (2 Tim 2, 25); ou exorta-se a “que não digam mal de ninguém, nem sejam conflituosos, mas sejam afáveis, mostrando sempre amabilidade para com todos os homens. Pois também nós éramos outrora insensatos” (Tit 3, 2-3). O livro dos Atos dos Apóstolos mostra que os discípulos, perseguidos por algumas autoridades, “tinham a simpatia de todo o povo“ (At 2, 47; cf. At 4, 21-33; At 5, 13).
Entretanto, ao refletirmos sobre o perdão, a paz e a concórdia social, deparamo-nos com um texto de Jesus Cristo que nos surpreende: “Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada. Porque vim separar o filho do seu pai, a filha da sua mãe e a nora da sua sogra; de tal modo que os inimigos do homem serão os seus familiares” (Mt 10, 34-36). É importante situá-lo no contexto do capítulo em que está inserido. Aqui vê-se claramente que o tema em questão é o da fidelidade à própria opção, sem ter vergonha, ainda que isso traga contrariedades e mesmo que os entes queridos se oponham a tal opção […]
A verdadeira superação. A verdadeira reconciliação não escapa do conflito, mas alcança-se dentro do conflito, superando-o por meio do diálogo e de negociações transparentes, sinceras e pacientes. A luta entre diferentes setores, “quando livre de inimizades e ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa concorrência honesta, fundada no amor da justiça“ (Quadragesimo anno, QA 114).
Várias vezes propus “um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito […] Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que preserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste“ (Evangelii gaudium, EG 228) […]
Perdão sem esquecimentos. Aqueles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou. Quebram o círculo vicioso, frenam o avanço das forças da destruição […] O perdão é precisamente o que permite buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem na injustiça do esquecimento […]