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Partindo da leitura da Bíblia: a Lectio Divina

Segundo a tradição monástica, o modo por excelência para “entrar” na realidade espiritual que está no profundo da realidade aparente é a meditação da Palavra de Deus, da Bíblia. Esta prática cotidiana que é chamada de Lectio Divina (leitura orante da Palavra de Deus) é a porta de entrada diária para a contemplação. Em um pequeno livro sobre os quatro passos da Lectio Divina (leitura, meditação, oração e contemplação), o monge camaldolense Dom Innocenzo Gargano descreve assim a última etapa do caminho: 

Claustro interior da Catedral de Canterbury, (Kent, Inglaterra), por David Iliff 

Poderíamos dizer que o lugar de máxima contemplação foi, de fato, o corpo de Jesus de Nazaré, nascido de Maria, porque nele, devido à habitação do Verbo de Deus, houve a conjunção perfeita entre o céu e terra, entre o que está além deste véu celestial e o que está deste lado e que identificamos com a terra. Isto nos levaria a concluir que o ápice da contemplação não reside em separar o que é espiritual do que é material, mas, no mínimo, em fundir tão perfeitamente quanto possível o céu e a terra, o divino e o humano, a dimensão vertical e a horizontal. Aquele que conseguisse sintetizar estas duas realidades seria, então, o autêntico contemplativo. 

[…] Poderíamos dizer, também, que realizamos a experiência da contemplação na meditação da Palavra de Deus quando, neste texto, nesta letra, nestas palavras claramente visíveis aos nossos olhos carnais, descobrimos a Palavra de Deus com os olhos da fé. Esta seria, portanto, uma síntese entre palavra e Espírito, […] e não se trataria de uma visão mental ou intelectual, mas de um fato vital. 

Descobrimos que tudo o que penetra em nossos sentidos, desde as plantas até os animais e os acontecimentos que se entrelaçam ao longo do tempo, tudo é uma manifestação da Palavra de Deus. Então, o encontro com a Sagrada Escritura torna-se para nós tão fecundo como o encontro com o acontecimento histórico de Jesus de Nazaré. Daí tiramos da fonte aquela luz que nos permite descobrir a sua presença mesmo naqueles setores, naquelas distâncias em que não entendíamos bem, não percebíamos bem a presença do próprio Verbo. 

[…] O contemplativo é aquele que, precisamente porque criou uma síntese entre o que é divino e o que é humano, precisamente porque foi completamente tomado pela Palavra de Deus, consegue, por conaturalidade, por consanguinidade, perceber as presenças infinitesimais e muito pequenas da Palavra de Deus que existem em cada realidade do cosmos e da história. O contemplativo não é, portanto, um homem desligado da história, mas é aquele que tem os olhos do coração agudos o suficiente para ser capaz de ver a presença da Palavra de Deus mesmo onde outros veriam apenas a presença do mal e do pecado. 

O contemplativo é fundamentalmente um otimista, portador da boa notícia […]. Quem anima, quem abre os olhos, quem nunca perde a coragem porque sabe com certeza que, mesmo nos acontecimentos mais dramáticos, mesmo nas situações mais pecaminosas, há sempre aquela centelha do Logos, da Palavra de Deus que chama, clama à plenitude da realização do mistério do Filho de Deus morto e ressuscitado. 

[…] Existe, porém, outra forma de olhar a contemplação e é aquela que parte da etimologia do termo usado, em grego, para indicar a mesma coisa: theoria. […] Theoria é, na verdade, a síntese de dois termos muito interessantes: thea e orao. Thea significa visão, mas uma visão no sentido panorâmico do termo. Orao significa […] ter a visão de algo. […] É como entrar no que se observa. Ora, o ponto de referência deste termo grego, theoria, é, na tradição cristã, apenas um: o Cristo crucificado. Uma única vez em todo o Novo Testamento, São Lucas usa o termo theoria para indicar exatamente a visão de Cristo crucificado no Calvário. 

Para os antigos Padres, isto significa que quem tem o dom da theoria, da contemplação, é sempre aquele que tem diante de si o mistério de Cristo crucificado como pedra angular da história, como a Palavra que toda a história revelou e continua a revelar. Neste caso, o contemplativo seria, então, aquele que olha tudo a partir desta visão de Cristo crucificado, um homem que vê em todas as dobras da história humana e do mundo o anúncio e a manifestação de Cristo crucificado. […] E onde os olhos do homem veem apenas uma desfiguração do rosto humano, os olhos da fé veem a reconciliação no Senhor, no Filho de Deus crucificado pelo homem. O anúncio que o contemplativo traz é, portanto, também aqui, um anúncio de paz, é uma boa notícia que parte como que da fonte de graça de Cristo crucificado. 

[…] Na raiz da contemplação, em todas essas formas, está finalmente, concretamente, a transfiguração determinada na pessoa pela sua conformação à Palavra de Deus. Quando a Palavra de Deus nos cinzelou a ponto de nos tornar perfeitamente semelhantes a ela […] nasce o homem novo que se deixa guiar pelo Espírito. A raiz da contemplação é o nascimento do homem novo, mas este nascimento é fruto daquele paciente trabalho de transformação que produz em nós o encontro constante e diário com a Palavra de Deus. 

Na Lectio Divina, a própria experiência batismal é revivida de alguma forma. O encontro com a Palavra permite-lhe, de fato, descer ao abismo de nós mesmos para nos tomar pela mão e, das profundezas a que havíamos chegado com o pecado, nos impelir a voltar à experiência luminosa da manhã de Páscoa, da qual, finalmente, abrimos diante de nós o espaço ilimitado de uma novidade de vida de contemplação. 

O homem novo poderá, então, usar os novos sentidos; os nascidos do Espírito Santo terão olhos capazes de ver que, apesar de tudo, o mistério da Morte e Ressur-reição de Cristo se manifesta na história. Daí toda a vasta gama de referências simbólicas nos místicos. Falar-se-á de visões, de gosto diferente, de condições inesperadas, de novas tangibilidades, do perfume das coisas, mas o denominador comum em todas estas experiências dos sentidos humanos continuará a ser a Presença do Espírito Santo; porém, precisamente porque se transformaram a ponto de verem em toda parte a presença da Palavra, os contemplativos são os únicos missionários cristãos. 

Na verdade, só os contemplativos podem dedicar-se à missão. Se essa transformação não preceder a missão, deve-se ter cuidado para que, embora se pretenda trazer a bela notícia do Evangelho, não se traga as nossas palavras humanas. Se a missão não for uma coisa só com a contemplação, não há mais a exousia (a autoridade) que a palavra de Jesus possuía, mas há simplesmente o ativismo, o barulho de toda a nossa agitação com a ilusão de agir para o bem da Igreja e para a glória de Deus. 

O ponto de chegada da Lectio Divina chama-se evangelização. E é importante. O fruto da contemplação autêntica só ocorre quando se […] permite aos outros aceder àquela mesma Palavra que transformou, finalmente, os nossos corações. 

(Trechos selecionados por Ana Lydia Sawaya)

GARGANO, Innocenzo. Ler e meditar a Bíblia: uma breve introdução à Lectio Divina. Rio Bonito: Benedictus, 2024 

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