O drama do Cristianismo em nossa sociedade é que todos imaginam conhecê-lo, porém, poucos o conhecem de fato. Na verdade, o que vemos com mais frequência é um conjunto de tradições mais ou menos originadas da fé cristã, mas que representam leituras particulares do Cristianismo, feitas a partir de diferentes matrizes culturais e ideológicas. Assim, todos acreditam que conhecem a mensagem cristã, mas, na verdade, conhecem apenas uma versão deturpada daquilo que ela realmente é.
Um livro sobre a vida de Cristo, escrito por Luigi Giussani, traz o título provocativo de Na origem da pretensão cristã (São Paulo: Companhia Ilimitada, 2012). O autor quis evidenciar justamente a distância entre nossa visão cotidiana do Cristianismo e aquilo que é a essência de sua doutrina. Já é humanamente impensável que um Ser infinito, eterno e todo-poderoso aceitasse se restringir à forma humana. Mais absurdo ainda que esse Ser, tendo vindo ao mundo, se despojasse de seu poder e aceitasse uma morte humilhante e abjeta numa cruz… E ainda mais: fazer isso por amor a nós, que comparados a Ele não passamos de seres ínfimos, frequentemente dados ao mal, que levamos a dor e o sofrimento a nossos irmãos e a destruição a toda a criação. Mas justamente essa é a “pretensão” da mensagem cristã.
A doação de Deus na cruz é um escândalo, de certa forma, inimaginável e inadmissível para nós, mas só reconhecemos a natureza do anúncio cristão, com sua devida dimensão, quando aceitamos essa pretensão aparentemente absurda do Cristianismo. A fé não se contrapõe nem abdica da razão, mas exige que esta dê um passo adiante, aceite o risco de verificar se algo que transcende os limites do pensar humano pode ser real. Não deveria ser algo estranho para nós, gente que vive em um mundo de ciência. Afinal, também não nos parece imediatamente óbvio que a Terra é redonda, que a pedra e a pluma sofrem a mesma aceleração da gravidade, que existem milhares de estrelas no universo, muitas com sistemas planetários como os nossos em volta – e tantas outras maravilhas que a ciência nos mostra e que parecem desafiar nossa lógica.
Sabendo que havia criado seres passíveis de sofrimento, Deus escolheu, também Ele, sofrer para mostrar que a dor e a morte não eram a última palavra da vida. O povo simples reconhece isso e muitas vezes certas manifestações religiosas parecem catarses, nas quais se libera a dor e o sofrimento que vão no coração do fiel. Em si, não é um erro, mas somente mais um momento em que Deus envolve o ser humano com sua ternura… Muitas vezes, porém, uma certa arrogância moderna, uma certa negação da dor como dimensão inerente à nossa natureza, nos afasta dos gestos litúrgicos e da beleza profundamente humana desses momentos.
Deus não precisa de nossas celebrações, nossos cultos e ofertas – mas sabe que nós precisamos celebrar, cultuar e oferecer para nos relacionarmos com Ele. As liturgias da Igreja são ocasião para que nós, seres materiais, dependentes dos sinais do mundo material, possamos nos aproximar do Inefável, ter um vislumbre daquilo que ultrapassa nossa compreensão. Assim, ao longo do Tríduo Pascal, que vai da Quinta-feira à noite do Sábado Santo, nós, seres humanos, temos a chance de mergulhar no mistério do Amor que, não bastasse ter criado todo o universo, liberta o ser humano da morte, aniquilando-se a Si mesmo.
É nesta perspectiva que tratamos nesta edição especial do Caderno Fé e Cultura sobre a Páscoa cristã. Eis o mistério da fé: a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo que celebramos nestes dias: “A Páscoa não é simplesmente uma festa entre outras: é a ‘festa das festas’, a ‘solenidade das solenidades’ (…) O mistério da Ressurreição, em que Cristo aniquilou a morte, penetra no nosso velho tempo com a sua poderosa energia, até que tudo Lhe seja submetido” (Catecismo da Igreja Católica – CIC 1169).
Lindo artigo!!!