O universo de Harry Potter é um dos maiores fenômenos da cultura pop, mas também um constante ponto de debate na comunidade católica. Mas o que a Igreja realmente diz sobre a literatura fantástica? Vale a pena entender essas polêmicas a partir de alguém que as vivenciou na sua infância e juventude. Vivida integralmente, é a experiência da fé que interpreta o mundo – e não o contrário…

Lembro de quando Harry Potter e o Prisioneiro de Azkabhan chegou aos cinemas, nas férias de julho de 2004. Não se falava em outra coisa na quarta série e, do alto dos meus 9 anos, eu sofria só. Quase conseguia ouvir a voz da minha mãe, já falecida: não era coisa boa, o Harry. Havia bruxos, magia e coisas contrárias à fé. Não convinha a uma menina católica. Duas décadas se passaram desde as tardes em que eu ouvia nomes engraçados de feitiços e criaturas no recreio sem entender do que se tratavam, e, se tivesse uma máquina do tempo à disposição, viajaria para dizer àquela menina que nunca esteve sozinha. Ainda hoje, não estaria.
Em junho de 2027, serão completados trinta anos desde que Harry Potter e a Pedra Filosofal chegou às livrarias. Desde o seu lançamento literário, passando pela chegada aos cinemas à criação de uma das franquias de maior sucesso da cultura pop, o universo mágico criado pela britânica J. K. Rowling nunca deixou de ser alvo de controvérsias entre os católicos. Uma busca pelo nome do famoso bruxinho em meios religiosos dá a dimensão da celeuma: há muito dito sobre o assunto. É certo que, dentro da geração que aprendeu a gostar de ler com Harry Potter, há um subgrupo de “filhos de pais católicos, proibidos de ler Harry Potter”, população esta que eu acreditava ter sido extinta com a popularização da saga. Ledo engano, e tomando ciência da continuidade da discussão, decidi investigar suas raízes no que me rendeu uma dissertação de mestrado. Incapaz de ditar critérios para que se leia uma ou outra coisa, espero, nas próximas linhas, oferecer as reflexões resultantes de um trabalho dedicado à minha mãe, que não gostava de Harry Potter, e aos meus filhos, os quais espero que gostem como eu.
Uma perversão dos símbolos cristãos? Tratemos de partida de uma das objeções mais comuns à série: o comentário de que “padres exorcistas alertaram contra Harry Potter”. A questão é que padres exorcistas, como quaisquer outros padres, têm opiniões diferentes: trata-se de uma divergência natural à Igreja no que tange a questões não dogmáticas. O Catecismo afirma que o demônio existe e age sobre o mundo para tentar as almas e afastá-las de Deus, sem tecer grandes considerações sobre como se dá essa ação. Veda, também, a prática da magia e da adivinhação, menos como coisas capazes de invocar presenças malignas, e mais como frutos da desconfiança. Nada é dito sobre a leitura de livros de ficção que contenham elementos tidos como pagãos.
Ocorre que a literatura em si mesma é coisa séria, podemos afirmá-lo tomando exemplos da história da Igreja: no século IV, São Basílio Magno ensinava que mesmo a literatura pagã, ao ilustrar os dilemas humanos, pode ser uma via de contemplação da Verdade. Referenciando o Bispo de Cesareia, o Papa Francisco confirmou, em sua carta sobre o papel da literatura na educação, que “a literatura amplia a experiência humana e abre horizontes de sentido, porque nela ressoam perguntas e esperanças universais, capazes de preparar o coração para a fé”. Não à toa, homens como J. R. R. Tolkien e G. K. Chesterton atribuíram à própria literatura um caráter mágico, assombroso, que escapa às nossas parcas pretensões de controle…
Por esse prisma, há quem acuse a literatura de J. K. Rowling de perverter símbolos cristãos e corromper a linguagem. O argumento é que a escritora teria empregado símbolos como a morte e a ressurreição, esvaziando-os de seu sentido cristão original e transplantando-os para uma narrativa mágica e secularizada. Assim, elementos que deveriam remeter a Cristo são “deturpados” ao aparecerem em um universo de bruxaria. Mais recentemente, há quem interprete a saga como promotora de uma agenda esotérica e liberal-progressista, pela forma como naturaliza a bruxaria, relativiza símbolos religiosos e reforça noções de autonomia individual e oposição a estruturas de autoridade tradicionais.
E se a Verdade insistir em se manifestar mesmo quando não chamada? Por outro lado, há quem veja no universo mágico de Harry Potter precisamente o tipo de Bem, de ordem e de sacrifício que só se torna visível quando a imaginação é educada a reconhecer a beleza e a verdade. A história, nesse olhar, não é sobre a exaltação da magia, mas sobre a vitória do amor, da lealdade e da entrega pessoal sobre o egoísmo e a busca pelo poder. Pode-se encontrar excelentes defesas da obra de J. K. Rowling em edições antigas da Communio, revista fundada pelo então Cardeal Joseph Ratzinger, além de muitos outros depoimentos de grandes sacerdotes, catequistas e críticos culturais.
Confesso minha predileção pela segunda alternativa, e tenho especial carinho pela tratativa dada à morte, do primeiro ao último livro. Já em A Pedra Filosofal, o diretor Dumbledore ensina a Harry que a morte é “a grande aventura seguinte”, contrapondo-a à obsessão humana pela imortalidade, que encontra sua forma mais extrema em Voldemort. No afã de escapar da morte, o vilão mutila a própria alma, tornando-se desfigurado moral e fisicamente. A lenda das Relíquias da Morte que dão título ao último livro reforça o mesmo ensinamento: aqueles que tentam dominar a morte caem em desgraça, enquanto quem a acolhe vive em paz.
Preciso dizer que, a despeito de meu pendor pelas interpretações amigáveis à saga, elas nunca me convenceram por completo. Não foram os “valores cristãos” que me fizeram gostar do Harry, e foi com o auxílio do filósofo Jacques Maritain que rabisquei minha própria terceira via. Fincado em São Tomás de Aquino, Maritain distingue entre o “agir”, voltado ao bem moral e ordenado pela prudência, e o “fazer”, voltado ao bem da obra, que é o campo da arte. A literatura não deve ser avaliada primeiro por seu efeito moral ou por intenções políticas, mas por sua fidelidade ao bem interno da própria obra: coerência, verdade interna, beleza. Para ele, a arte possui regras próprias, e tudo o que a submete a critérios externos a deturpa. Quando permanece fiel a si mesma, porém, é capaz de refletir algo maior do que o próprio artista: um lampejo da Verdade, mesmo sem que o autor o tenha pretendido.
Se Rowling estivesse tentando nos dar uma mera aula de catequese ou disseminar um panfleto ideológico, o Harry não teria toda sua graça: e que o comprovem as obras contemporâneas obcecadas ora em dissuadir-nos da agenda “woke”, ora do imperativo de salvar a civilização ocidental, todas fadadas a circulares entre pares, em nossa crescente Torre de Babel. Nada impede, contudo, que façamos conjecturas: foi a própria autora quem disse que os dois versículos bíblicos citados na série “resumem toda a história”: o primeiro, na lápide da irmã falecida do poderoso diretor, “onde estiver o vosso tesouro, aí estará o vosso coração”. O segundo, no túmulo dos pais do próprio Harry, em uma cena que sempre me leva às lágrimas: “o último inimigo a ser derrotado é a morte”. As precisas intenções de Rowling só serão conhecidas à luz da Verdade; entre seus frutos, porém, será contada a conquista de um coração de criança para a leitura e para a esperança de um esperado reencontro. Nisso, por si só, há algo de mágico.