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‘Portal da Virgem’: uma autêntica catequese visual

O projeto arquitetônico e artístico do Portal da Virgem, da Basílica de Aparecida, transcende a mera dimensão estética para se constituir em autêntica catequese visual. O imponente Totem de Ouro de 45 metros que remete à Escada de Jacó; os arcanjos Gabriel, Miguel e Rafael que sobrevoam a Imagem; a simbologia da pesca milagrosa; as 12 mulheres do Antigo Testamento como prefiguração de Maria; a rica iconografia das rampas ornamentadas com a Ladainha Lauretana, flores, pássaros da fauna brasileira, elementos do Cântico dos Cânticos: cada detalhe artístico – desde a cor dourada que simboliza a presença divina até a muiraquitã em estilo marajoara como símbolo de ressurreição – integra-se em uma narrativa teológica coerente, que apresenta Aparecida como lugar teofânico, onde céu e terra se comunicam, e como oásis espiritual que acolhe milhões de peregrinos anualmente

Luciney Martins/O SÃO PAULO

O retábulo (estrutura colocada atrás e acima do altar nas igrejas, do latim retro, atrás, e tabula, mesa/tábua) onde está a Imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, intitulado “Portal da Virgem”, é o lugar mais visitado pelos peregrinos que vão à sua Basílica. O projeto arquitetônico do espaço, concebido e iniciado antes do Concílio Vaticano II, passou por alterações após este evento, para adequar-se às orientações litúrgicas. Antes, o projeto previa que a Imagem ocupasse lugar na região central do templo. Após as mudanças, o local para a Imagem foi projetado na parede extrema da Nave Sul, pois é Cristo que ocupa o centro. A Imagem em seu atual local, parece estar fora do espaço em si, não invade o espaço celebrativo. Para visita à Imagem, os peregrinos deves acessá-la por meio de rampas que estão no lado, embora ao participarem da celebração eucarística tenham a visão da Imagem.

A luz do Mistério. O “Portal da Virgem” possui uma iconografia, criada pelo artista sacro Cláudio Pastro, com respaldo na mariologia ensinada pela Igreja, acentuando a devoção à Virgem com o título de Aparecida, com ênfase trinitária, em que a Virgem é apresentada como filha agraciada por Deus, Mãe do Redentor e morada do Espírito Santo. O conjunto das artes desse espaço toma por base o capítulo VIII da Lumen gentiun, mostrando que a Virgem Maria está associada ao ministério de Cristo e da Igreja, apresentando uma síntese sobre a doutrina da Igreja a respeito da Virgem Maria.

O espaço contém um grande “Totem de Ouro”, medindo 45 metros por 8 metros, que se estende do piso até o teto, dando a ideia de que terra e céu estão em comunicação. Por isso, sua concepção artística nos remete à “Escada de Jacó” (Gn 28,12), símbolo do cuidado de Deus para com a humanidade, pois, em sonho, Jacó teve a visão de anjos que subiam e desciam, fazendo comunicação entre o céu e a terra. Esses anjos, no conjunto artístico concebido pelo artista, estão representados pelos arcanjos, Gabriel, Miguel e Rafael, sobrevoando a Imagem da Virgem Aparecida, indicando que naquele lugar, para onde milhares de fiéis acorrem, se dá a manifestação de Deus, fazendo de Aparecida um lugar teofânico. Os anjos, em traços sutis, medindo 6 metros, indicam a presença do Invisível e estão sobrepostos em uma faixa branca em movimento, indicando o sopro do Espírito que confere vida a este lugar. 

Thiago Leon/Santuário Nacional de Aparecida

A concepção artística do espaço em referência é a de um “portal”, por onde se adentra no espaço, no Mistério do sagrado. Por isso, o totem em ouro, alusão à presença de Deus que se dá por meio da “Luz Plena”, “Aquele que reluz em si mesmo”, é esta Luz que envolve a Virgem Maria fazendo-a associada ao mistério da salvação, ou seja, o que acontece na vida de Maria não é mérito de si mesma, mas Daquele que a escolheu e a preparou para mãe do Redentor dos homens.

O nicho e seu entorno. O totem em cor dourada remete ao mais nobre dos metais, que na arte cristã simboliza imutabilidade, eternidade e perfeição, atributos de Deus; é o espaço ocupado pela Virgem, pois Deus se manifesta por meio dela ao povo brasileiro que a invoca. A Imagem está no centro de um grande sol, remetendo ao Cristo Sol que está no painel oposto, o Cristo Pantocrator sobre a Porta da Misericórdia, recordando que a beleza, a graça que irradia da Virgem são provenientes da ação de Deus em vista de sua maternidade divina. Ela é a mulher vestida de sol do Apocalipse (Ap 12,1), vestida da luz e da vida que vem de Deus que tudo cria, nos fazendo recordar que em Gênesis, quando se dá a criação, Deus cria a luz, referência ao dia e a noite (Gn 1,3-5). As estrelas que vemos circundando a Imagem, são as mesmas que coroam a Virgem, alusivas às doze tribos de Israel (Gn 37,9). A esta mulher, o artista fez referência no painel intitulado “A evangelização do Brasil”, localizado na Nave Oeste, a quem o mal almeja atacar para destruir o filho que será posto à luz. Esse menino é Cristo, e essa mulher, a Igreja esposada por Cristo, e desta Igreja Virgem e Mãe, filhos são gerados pelo sacramento do Batismo para a comunidade Igreja que somos todos nós. 

O nicho onde está a Imagem possui duas faces: uma para o lado externo, por onde passam os peregrinos, a outra para o lado interno, onde está a Capela dos Santos Apóstolos. Do lado externo, a arte faz alusão à pesca milagrosa pela qual “apareceu” a Imagem. Por isso, vemos peixes em alto relevo, confeccionados em bronze e com banho de ouro, doados pelos peregrinos. Esses peixes estão em águas em movimento, que são o sopro de vida proveniente do Espírito Santo que cria e dá vida. São estas águas referência às do rio Paraíba do Sul em que se deu o acontecimento do encontro da Imagem. Na moldura interna, no entorno da Imagem, vemos o texto das últimas frases do Apocalipse: “O Espírito e a esposa, dizem: Amém vem Senhor Jesus” (Ap 22,20), conferindo ao espaço caráter esponsal entre o Cordeiro e a comunidade celebrante, pois “o lugar da celebração cristã corresponde às núpcias de Deus (criador e Redentor) com o seu povo (a criatura, a sua Igreja)”.

No plano horizontal da Imagem, nas cores branco e tons variados de azul, cores predominantes em toda a arte da Basílica, estão as doze principais mulheres do Antigo Testamento (Eva, Sara, Rebeca, Lia, Raquel, Míriam, Débora, Rute, Ana, Abigail, Judite e Ester), todas prefiguração da Virgem Maria que ocupa o centro do painel, pois como afirmou o Concílio Vaticano II, é ela a nova Eva que gera Cristo, o Novo Adão, que por meio da Cruz, Árvore da Vida, redime a todos. Por isso, é invocada como Mãe de Deus, mãe espiritual da Nova Humanidade, que por sua maternidade alcança não somente Jesus Cristo, mas a todos os mortais que fazem parte da Igreja corpo de Cristo,, como assegurou o São João Paulo II ao dizer que em Cristo Redentor, a Virgem Maria assume uma nova maternidade, a de mãe de todos que são redimidos, “de todos os membros do Corpo Místico do Filho”. O tema, Maria, Nova Eva, é dos mais antigos: o encontramos em São Justino, que viveu por volta dos anos 100, próximo da era apostólica. É nele, em Santo Irineu e em outros padres da Igreja que encontramos o paralelismo entre a Virgem Maria e a virgem Eva, que se sabe, com o passar dos anos contribuíram para o desenvolvimento do tema.

Emolduram essas mulheres figuras como a flor da tamareira, alusão ao oásis, lugar da vida e de vigor espiritual; do maracujá, recordando as terras brasileiras; uvas, enfatizando o mistério; e a muiraquitã, espécie de rã da fauna brasileira, que na arte de Pastro revela um significado positivo, diverso do que adquire na arte cristã, que sempre a figurou com sentido pejorativo por ser uma das sete pragas do Egito mencionadas do Antigo Testamento (Ex 8,1-15), Na arte da Basílica, esse animal nos revela uma característica cultural, pois é uma espécie de rã apresentada em estilo marajoara, estilo indígena, em geral dos incas, encontrada mais no Norte do Brasil, e conhecida como um símbolo de ressurreição por ser um anfíbio, que ao faltar água, adentra no barro que ressequido pelo sol, desidrata totalmente, transformando-se como que em uma folha seca, e com o retorno das chuvas, hidrata-se, voltando ao que era antes, retornando à superfície.

As rampas, o jardim e o oásis. Para passar por este “portal”, deve-se percorrer uma rampa ladeada por painéis com a Ladainha Lauretana, oração popular e cristológica, na qual contemplamos um mistério que convida a meditar a partir das invocações sobre a Virgem. As 28 invocações, em letras em ouro sobre azulejo branco, estão sobre flores (flor-de-lis do campo), símbolo de pureza, virgindade e beleza espiritual, e pássaros da fauna brasileira (andorinha, canarinho da terra, beija-flor, sabiá, maritaca e tucano) que habitam esse jardim, conferindo ao espaço características do Cântico dos Cânticos (cf. Ct 4,12), com o qual a Virgem faz paralelismo, sendo ela o novo jardim plantado, preparado e cultivado (sem a mancha do pecado), do qual nasce frutos da árvore da vida (Jesus Cristo). Ainda do Cântico dos Cânticos, o artista se inspirou nas expressões “pequeno Jardim fechado” (Ct 4,12) e “fonte selada” (Ct 4,12), para retratar a Virgem Maria como jardim fechado, recordando a passagem evangélica da Anunciação, na qual o anjo diz que ela conceberia e daria à luz um filho, permanecendo virgem, verdades preanunciadas no Cântico dos Cânticos, no qual confere uma narração a respeito de um jardim em que está a fonte das águas que formam os quatro rios que banham os quatro cantos da terra. Esse jardim é a Basílica, lugar em que todos são acolhidos e banhados com essas águas que geram vida nova. A Virgem Maria nesse lugar, é o portal do jardim, pelo qual peregrinos são acolhidos e direcionados ao centro, o altar para a eucaristia. Não por acaso a Imagem está no extremo da nave Sul, ou seja, acolhendo e direcionando a Cristo. 

Outros símbolos cristãos no conjunto artístico do espaço em que está a Imagem, além de aludir à ação de Deus neste lugar, fazem referência a um “oásis”, lugar de vida, repouso, paz, tranquilidade, no qual os peregrinos se abastecem espiritualmente para retornarem ao convívio em suas comunidades de origem, e enfrentar os desertos da vida, passagem para a eternidade.

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