A exortação apostólica pós-sinodal Reconciliatio et Paenitentia, de São João Paulo II, publicada em 1984, em sua Primeira parte, “Conversão e reconciliação: tarefa e compromisso da Igreja” trata de forma ampla da divisão que o pecado traz tanto ao coração do ser humano quanto à sociedade – e, evidentemente, ao perdão e à reconciliação trazidos ao mundo por meio de Jesus Cristo. A seguir, trazemos alguns trechos dessa Primeira Parte da exortação, particularmente apropriados para a reflexão num momento de grande divisão social.
O olhar do pastor descobre, infelizmente, entre diversas características do mundo e da humanidade do nosso tempo, a existência de numerosas, profundas e dolorosas divisões […] Na raiz das rupturas não é difícil identificar conflitos que, em vez de serem resolvidos mediante o diálogo, se agudizam no confronto e na oposição […]
Uma vez que a Igreja, sem se identificar com o mundo, nem ser dele, está inserida nele e está em diálogo com ele, não é de admirar que se notem na sua própria estrutura repercussões e sinais da divisão que dilacera a sociedade humana. Para além das cisões entre as comunidades cristãs que há séculos a contristam, a Igreja experimenta hoje no seu seio, aqui e além, divisões entre as suas próprias componentes, causadas pela diversidade de pontos de vista e de escolhas, no campo doutrinal e pastoral. Também essas divisões podem, por vezes, parecer irremediáveis.
Por mais impressionantes que se apresentem tais lacerações à primeira vista, só as observando em profundidade se consegue individuar a sua raiz: esta encontra-se numa ferida no íntimo do homem. À luz da fé, chamamos-lhe pecado, começando pelo pecado original, que cada um traz consigo desde o nascimento, como uma herança recebida dos primeiros pais, até os pecados que cada um comete, abusando da própria liberdade.
Nostalgia de reconciliação. O mesmo olhar indagador, se é suficientemente perspicaz, captará no seio da divisão um desejo inconfundível, da parte dos homens de boa vontade e dos verdadeiros cristãos, de recompor as fraturas, de cicatrizar as lacerações e de instaurar, a todos os níveis, uma unidade essencial. Esse desejo comporta, em muitos casos, uma verdadeira nostalgia de reconciliação, mesmo quando não é usada tal palavra […] A aspiração a uma reconciliação sincera e consistente é, sem sombra de dúvida, um móbil fundamental da nossa sociedade, como que reflexo de um irreprimível desejo de paz; e é-o tão vigorosamente — por mais paradoxal que pareça — quanto mais perigosos são os próprios fatores de divisão.
A reconciliação torna-se necessária porque se deu a ruptura do pecado, da qual derivaram todas as outras formas de ruptura no íntimo do homem e à sua volta. A reconciliação, portanto, para ser total, exige necessariamente a libertação do pecado, rejeitado nas suas raízes mais profundas. Por isso, há uma estreita ligação interna, que une conversão e reconciliação: é impossível dissociar as duas realidades, ou falar de uma sem falar da outra […]
“O filho pródigo”, uma parábola de reconciliação. O homem, cada um dos homens, é este filho pródigo: fascinado pela tentação de se separar do Pai para viver de modo independente a própria existência; caído na tentação; desiludido do nada que, como miragem, o tinha deslumbrado; sozinho, desonrado e explorado no momento em que tenta construir um mundo só para si; atormentado, mesmo no mais profundo da própria miséria, pelo desejo de voltar à comunhão com o Pai. Como o pai da parábola, Deus fica à espreita do regresso do filho, abraça-o à sua chegada e põe a mesa para o banquete do novo encontro, com que se festeja a reconciliação.
O que nesta parábola sobressai mais é o acolhimento festivo e amoroso do pai ao filho que regressa: imagem da misericórdia de Deus sempre pronto a perdoar. Assentemos desde já nisto: a reconciliação é principalmente um dom do Pai Celeste.
Mas a parábola faz entrar em cena também o irmão mais velho, que recusa ocupar o seu lugar no banquete. Reprova ao irmão mais novo os seus extravios e ao pai o acolhimento que lhe dispensou, enquanto a ele, morigerado e trabalhador, fiel ao pai e à casa, nunca foi permitido — diz ele — fazer uma festa com os amigos. Sinal de que não compreende a bondade do pai. Enquanto este irmão, demasiado seguro de si mesmo e dos próprios méritos, ciumento e desdenhoso, cheio de azedume e de raiva, não se converteu e se reconciliou com o pai e com o irmão, o banquete ainda não era, no sentido pleno, a festa do encontro e do convívio recuperado.
O homem — cada um dos homens — é também este irmão mais velho. O egoísmo torna-o ciumento, endurece-lhe o coração, cega-o e leva-o a fechar-se aos outros e a Deus. A benignidade e a misericórdia do pai irritam-no e incomodam-no; a felicidade do irmão reencontrado tem um sabor amargo para ele. Também sob este aspecto ele precisa se converter para se reconciliar […]
À luz desta inesgotável parábola da misericórdia que apaga o pecado, a Igreja, acolhendo o apelo que nela está contido, compreende a sua missão de empenhar-se, seguindo as pegadas do Senhor, pela conversão dos corações e pela reconciliação dos homens com Deus e entre si, duas realidades que estão intimamente conexas […]
A Igreja reconciliadora e reconciliada. Como dizia São Leão Magno, ao falar da paixão de Cristo, “tudo aquilo que o Filho de Deus fez e ensinou para a reconciliação do mundo, nós não o conhecemos somente pela história das suas ações passadas, mas sentimo-lo, também, na eficácia do que Ele realiza no presente” […] Em íntima conexão com a missão de Cristo, a missão da Igreja, assaz rica e complexa, pode, portanto, resumir-se na tarefa, central para ela, da reconciliação do homem: com Deus, consigo mesmo, com os irmãos e com toda a Criação […]
Os caminhos [para a reconciliação] são exatamente os da conversão do coração e da vitória sobre o pecado, seja ele o egoísmo ou a injustiça, a prepotência ou a exploração de outrem, o apego aos bens materiais ou a busca desenfreada do prazer. Os meios são os da fiel e amorosa escuta da Palavra de Deus, da oração pessoal e comunitária e, sobretudo, dos sacramentos, verdadeiros sinais e instrumentos de reconciliação, entre os quais sobressai, precisamente sob este aspecto, aquele a que, com razão, costumamos chamar o sacramento da Reconciliação ou da Penitência […]
A Igreja, para ser reconciliadora, deve começar por ser uma Igreja reconciliada. Nessa expressão simples e linear está subjacente a convicção de que a Igreja, para anunciar e propor de modo cada vez mais eficaz ao mundo a reconciliação, deve tornar-se cada vez mais uma comunidade (ainda que fosse o “pequeno rebanho” dos primeiros tempos) de discípulos de Cristo, unidos no empenho em se converterem continuamente ao Senhor e em viverem como homens novos no espírito e na prática da reconciliação.
Perante os nossos contemporâneos, tão sensíveis à prova dos testemunhos concretos de vida, a Igreja é chamada a dar o exemplo da reconciliação, antes de mais no seu interior; e, para isso, todos devemos esforçar-nos por apaziguar os ânimos, moderar as tensões, superar as divisões, sanar as feridas eventualmente infligidas entre irmãos, quando se agudiza o contraste entre opções no campo do opinável, e procurar, de preferência, estar unidos naquilo que é essencial para a fé e a vida cristã, segundo a antiga máxima: In dubiis libertas, in necessariis unitas, in omnibus caritas (liberdade naquilo que é duvidoso, unidade no que é necessário e caridade em todas as coisas) […]
Em qualquer caso, a Igreja promove uma reconciliação na verdade, pois sabe bem que não são possíveis nem a reconciliação nem a unidade, fora ou contra a verdade.