Sinodalidade e família a partir do Papa Francisco

Na exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia (AL) do Papa Francisco, lê-se que “a Igreja é família de famílias, constantemente enriquecida pela vida de todas as igrejas domésticas” (AL 87). Dos muitos e variados temas concernentes à família ou às relações familiares dentro e fora da Igreja abordados pelo documento, vale a pena destacar a noção de Igreja como família de famílias, pois, no contexto de 10 anos de pontificado, Francisco resolveu enfrentar decididamente as questões relativas à vida familiar e à vida eclesial na atualidade. Ademais, as duas temáticas envolvem dois conceitos-chave para o Papa: a alegria e a fraternidade.

Não somente diria que a família é importante para a evangelização de um mundo novo. A família é importante, é necessária, para a sobrevivência da humanidade. Se não existe a família, a sobrevivência cultural da humanidade corre perigo. É a base, nos agrade ou não: a família (Entrevista à rádio da Arquidiocese do Rio de Janeiro, 27/jul/2013)

Retomando o relatório final do Sínodo ordinário (2015) para a família (Relatio finalis), a Amoris laetitia (AL) afirma que “em virtude do sacramento do Matrimônio, cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem para a Igreja. Nesta perspectiva, será certamente um dom precioso, para o momento atual da Igreja, considerar também a reciprocidade entre família e Igreja: a Igreja é um bem para a família, a família é um bem para a Igreja” (AL 87). Se situamos essa relação no momento atual da Igreja, é possível, e até necessário, elaborar uma analogia entre Igreja e família numa perspectiva de sinodalidade desejada para o hoje e o amanhã da missão da Igreja, entendida na concreta comunhão e participação.

No contexto da crise atual. O Papa, na Evangelii gaudium (EG), constata que “a família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as comunidades e vínculos sociais. No caso da família, a fragilidade dos vínculos se reveste de especial gravidade, porque se trata da célula básica da sociedade” (EG 66). A crise cultural que marca os vínculos comunitários e sociais não afeta somente a família em suas relações, mas, também, a “família de famílias” ou “comunidade eclesial”, aproximando as expressões como o faz o Documento de Aparecida (DAp 119).

A analogia é clara quando a Amoris laetitia retoma novamente o relatório final do Sínodo ao postular que “os cônjuges são de certo modo consagrados e, por meio duma graça própria, edificam o Corpo de Cristo e constituem uma igreja doméstica (cf. Lumen gentium, LG 11), de tal modo que a Igreja, para compreender plenamente o seu mistério, olha para a família cristã, que o manifesta de forma genuína” (AL 67). O ser igreja doméstica da família cristã se concretiza por aqueles elementos mesmos das primeiras comunidades cristãs que desenham o rosto da Igreja, família de famílias, presentes nos Atos do Apóstolos: “Os que haviam se convertido eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações” (At 2, 42).

Se é verdade que para a Igreja compreender plenamente o seu mistério faz-se necessário olhar para a família cristã, torna-se urgente, senão vital para a vida eclesial, levar mais a sério a analogia entre Igreja e família sobretudo no que concerne ao modus vivendi (o modo de vida) da família, num contexto de transformação dos vínculos e das relações familiares a partir do encontro com Jesus Cristo.

Por uma forma eclesial familiar. Com a proposta de sinodalidade lançada pelo Papa Francisco, o modus vivendi (modo de viver) da Igreja está sendo debatido, a fim de deixar transparecer mais e melhor o seu modus essendi (modo de ser). Propor uma forma eclesial familiar significa operar uma analogia capaz de suscitar inadiáveis e fundamentais transformações no modus vivendi da Igreja. Nesse contexto, surge, de imediato, um questionamento sobre uma relação eclesial ainda muito “verticalizada”, marcadamente hierárquica, muitas vezes engessada num estilo “quase militar” do tipo superior-subalterno, verificado nas relações não só entre bispos, sacerdotes e diáconos, mas destes últimos com o restante do povo de Deus, e até mesmo no meio deste, em nossas diversas comunidades espalhadas pelo Brasil.

As relações familiares na contemporaneidade, sem tender para nenhuma ideologia, são, de fato, muito mais “horizontalizadas”. Afirma-se que na família cada membro é visto em sua totalidade. Pais e mães, mantendo a autoridade e a responsabilidade sobre os filhos, em particular os menores, procuram exercer seu ofício de modo mais dialogado, especialmente a partir da adolescência, por meio de argumentos convincentes sobre o que é o bom a ser buscado e o mal a ser evitado, sobre os projetos de vida e as decisões pessoais e sociais. A relação entre o homem e a mulher tende a ser de reciprocidade mútua, em igual dignidade, valorizando ao mesmo tempo aquilo que é próprio do universo feminino e masculino. Em suma, as relações familiares, embora também provocadas pelas transformações e mudanças, podem ser exemplares para uma Igreja chamada a ser família de famílias.

No caminho sinodal. Se é verdade que todo corpo humano necessita de uma coluna vertebral, que se configura como “eixo vertical” desse corpo, também é verdade que sem uma estrutura óssea e uma massa muscular correspondentes – a dimensão “horizontal” do corpo, por assim dizer – esse corpo tende a se encurvar, dobrando sobre si mesmo, adquirindo uma postura irregular, deficiente e doentia. Sem negar, portanto, a necessidade de uma hierarquia – não somente entendida como aquela oficial – que seria a dimensão vertical da Igreja, reconhece-se que ainda há muito o que fazer para dar lugar a uma dimensão mais horizontal da vida eclesial. O modus operandi (modo de operar ou de fazer) eclesial ainda carece muito de transformações para se chegar a um modus vivendi de uma Igreja família de famílias. Com o afã de levar a cabo missões, planos de pastoral, projetos de evangelização ou até mesmo de ação social, muitas vezes as pessoas, incluindo os ministros ordenados, são quase que “instrumentalizados”, pois, o que conta, ao final, parece ser o bom êxito da ação. Nesse sentido, alegria e fraternidade no seio da família cristã e da vida eclesial ficam somente como palavras de documentos ou belos discursos.

Refletindo sobre o modo de se relacionar em família, o Papa Francisco afirma: “A pessoa amada merece toda a atenção. Jesus era um modelo, porque, quando alguém se aproximava para falar com Ele, fixava nele o seu olhar, olhava com amor (cf. Mc 10, 21). Ninguém se sentia transcurado na sua presença, pois as suas palavras e gestos eram expressão desta pergunta: ‘Que queres que te faça?’ (Mc 10, 51). Vive-se isso na vida cotidiana da família. Nela, recordamos que a pessoa que vive conosco merece tudo, pois tem uma dignidade infinita por ser objeto do amor imenso do Pai. Assim floresce a ternura, capaz de suscitar no outro a alegria de sentir-se amado” (AL  323).

A proposta de uma forma eclesial familiar sugere que tais atitudes vividas no seio da família, inspiradas nos gestos de Jesus, tornem-se igualmente atitudes eclesiais. Espera-se, assim, que com as perguntas: “você pode fazer isso?”, “você está disponível para essa missão?”; façam-se outras, tais como: “o que você pensa sobre isso?” e “como você está?”, a fim de que a Igreja, família de famílias, possa encarnar, de fato, a alegria e a fraternidade advindas da experiência de fé em Jesus Cristo.

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