‘The boys’ e o ocaso dos bons heróis

Os super-heróis mostrados nos filmes parecem cada vez mais distantes de um ideal de nobreza de caráter. Sem a experiência do encontro com um Deus de amor, a própria bondade parece um valor cada vez menos sincero.

The boys, da Amazon Prime Video, é uma das séries recentes de maior sucesso no streaming. Narra as peripécias de um grupo de super-heróis desajustados, com moralidade mais que questionável, manipulados por uma grande corporação capitalista, dados ao exibicionismo e à violência desenfreada, envolvidos em bacanais e episódios trágicos nascidos da irresponsabilidade no uso de seus superpoderes.

Aqueles criados à sombra dos super-heróis do passado irão se perguntar: o que aconteceu com Super-homem, modelo de integridade moral, Batman, que em hipótese alguma matava os criminosos, ou mesmo o Homem-Aranha, que popularizou a frase “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”?

A resposta mais imediata é que o público se cansou deles. Sua perfeição de caráter se tornou monótona, repetitiva e pouco crível. As pessoas querem heróis com maior carga dramática, com quem possam se identificar e não seres superiores, que de certa forma, ao serem imaginados, parecem apontar o dedo para nossas contradições, incoerências e demais pecados.

Anti-heróis não são uma novidade nem no cinema, nem na literatura. A “segunda chance”, a possibilidade de remissão dos erros do passado, o heroísmo escondido na raiva e na violência são temas recorrentes no cinema e na arte em geral. Contudo, mesmo esses anti-heróis exibiam um forte senso moral. O que os distinguia era não seguirem as regras convencionais, mas serem devotados às suas próprias. O que vemos agora é uma trágica percepção de que os valores morais que orientavam a conduta dos heróis de antigamente não se sustentam ou, pior, foram usados cinicamente como instrumento de repressão e dominação moral.

Curiosamente os heróis e os deuses míticos tanto dos gregos quanto dos nórdicos, tão em voga hoje em dia, eram um pouco como esses super-heróis atuais. Invertendo o paradigma bíblico (Gn 1, 26-28), eram deuses feitos à nossa imagem. Seria muito difícil, na história do Ocidente, separar a figura do herói nobre e altruísta da mensagem cristã. Talvez tenhamos que repensar a famosa citação de Dostoievsky: “se Deus não existe, tudo é permitido” (Os irmãos Karamazov, Editora Martin Claret, 2013). Agora, talvez seja melhor dizer “se Deus não existe, a bondade não tem sentido”.

Já em 1926, no livro A tentação do Ocidente (Editora do Brasil, 2005), André Malraux escreveu: “Não há ideal a que possamos sacrificar-nos, porque de todos eles conhecemos a mentira, nós os que ignoramos em absoluto o que seja a verdade”.  Como a figura de um super-herói irrepreensível pode coexistir com essa desilusão niilista? Parece até mais óbvio pensar seus estereótipos de masculinidade, feminilidade, honra e dedicação como armadilhas ideológicas para restringir a liberdade humana.

Trata-se de um cenário contraditório. Nos preocupamos cada vez mais com as minorias, com os oprimidos, com o bullying e a ganância. Mas, ao mesmo tempo, desacreditamos que os poderosos possam ter freios morais, que o amor possa gerar um verdadeiro altruísmo. Escandalizar-se pouco adianta. Ao século XX, faltaram mais testemunhos de amor cristão à altura das reflexões críticas que denunciavam a hipocrisia de nossa sociedade. Tais testemunhos existiram, mas em menor quantidade do que o necessário. Esse é o desafio que se apresenta a nossos tempos.

1 comentário em “‘The boys’ e o ocaso dos bons heróis”

  1. Que agradável leitura. Gostei muito do artigo. Esse tema foi muito importante em minha adolescência, em que os valores dos heróis ajudaram a moldar minha personalidade. Ainda no final da adolescência (tão tardiamente), consegui fazer o link de que todos aqueles valores (não matar, a nobreza, usar os poderes para servir, fazer a coisa certa quando seria mais fácil fazer a coisa errada etc) tinham sua origem nos valores cristãos. E por vezes já me peguei pensando: o que seria de mim se minha adolescência fosse hoje? Com esses modelos de novos heróis?

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