Nas passagens a seguir da Deus caritas est, Bento XVI explica que a Igreja tem um dever triplo inseparável: o anúncio da Palavra, a celebração dos Sacramentos e o serviço da caridade. Aponta, ainda, que o amor deve animar os leigos em sua atividade política, vivida como “caridade social”, conceito aprofundado depois pelo Papa Francisco, com o termo “amor político”, na Fratelli tutti (FT 180ss).

“Se vês a caridade, vês a Trindade” – escrevia Santo Agostinho […] Quando morreu na cruz, Jesus — como indica o evangelista — “entregou o Espírito” (cf. Jo 19,30), prelúdio daquele dom do Espírito Santo que Ele havia de realizar depois da Ressurreição (cf. Jo 20,22) […] O Espírito é aquela força interior que harmoniza nossos corações com o de Cristo e leva-nos a amar os irmãos como Ele os amou […] É força que transforma o coração da comunidade eclesial, para ser, no mundo, testemunha do amor do Pai […] Toda a atividade da Igreja é manifestação de um amor que procura o bem integral do ser humano, a sua evangelização por meio da Palavra e dos Sacramentos, sua promoção nos vários âmbitos da vida (Deus caritas est, DCE 19).
A caridade é dever da Igreja. O amor ao próximo, radicado no amor de Deus, é um dever antes de mais para cada um dos fiéis, e, também, para a comunidade eclesial inteira, desde aquela local, passando pela Igreja particular até à Igreja universal […]
A natureza íntima da Igreja exprime-se em um tríplice dever: anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebração dos Sacramentos (leiturgia), e serviço da caridade (diakonia). Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de atividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência.
A Igreja é a família de Deus no mundo. Nesta família, não deve haver ninguém que sofra por falta do necessário. Ao mesmo tempo, porém, a caritas-agape estende-se para além das fronteiras da Igreja; a parábola do bom Samaritano permanece como critério de medida, impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado “por acaso” (cf. Lc 10,31), seja ele quem for.
(DCE 20-25)
Justiça e caridade. Desde o século XIX, vemos levantar-se contra a atividade caritativa da Igreja uma objeção. Os pobres – diz-se – não teriam necessidade de obras de caridade, mas de justiça […] É verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a prossecução da justiça e que a finalidade de uma justa ordem social é garantir a cada um, no respeito do princípio da subsidiariedade, a própria parte nos bens comuns […]
A justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política […] A Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça […]
O amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do ser humano enquanto ser humano. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre, também, situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. Um Estado que queira prover a tudo e tudo açambarque torna-se, no fim de contas, uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o ser humano sofredor – todo ser humano – tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal […]
O dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade é próprio dos fiéis leigos. Estes, como cidadãos do Estado, são chamados a participar pessoalmente na vida pública. Não podem, pois, abdicar “da múltipla e variada ação econômica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgânica e institucionalmente o bem comum” […] Embora as manifestações específicas da caridade eclesial nunca possam confundir-se com a atividade do Estado, no entanto, a verdade é que a caridade deve animar a existência inteira dos fiéis leigos e, consequentemente, também a sua atividade política vivida como “caridade social” […]
(DCE 26-29)
O perfil da atividade caritativa da Igreja. É muito importante que a atividade caritativa da Igreja mantenha todo o seu esplendor e não se dissolva na organização assistencial comum, tornando-se uma simples variante da mesma.
A caridade cristã é, em primeiro lugar, simplesmente a resposta àquilo que, em uma determinada situação, constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados, os nus vestidos, os doentes tratados para se curarem, os presos visitados etc. [… Mas] os que trabalham nas instituições caritativas da Igreja devem distinguir-se pelo fato de que não se limitam a executar habilidosamente a ação conveniente naquele momento, mas dedicam-se ao outro com as atenções sugeridas pelo coração, de modo que ele sinta a sua riqueza de humanidade. Por isso, para tais agentes, além da preparação profissional, requer-se também e, sobretudo, a “formação do coração”: é preciso levá-los àquele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu íntimo ao outro de tal modo que, para eles, o amor ao próximo já não seja um mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequência resultante da sua fé que se torna operativa pelo amor (cf. Gal 5,6).
A atividade caritativa cristã deve também ser independente de partidos e ideologias. Não é um meio para mudar o mundo de maneira ideológica, nem está a serviço de estratégias mundanas, mas é atualização, aqui e agora, daquele amor de que o homem sempre tem necessidade […] O programa do cristão – o programa do bom Samaritano, o programa de Jesus – é “um coração que vê”. Este coração vê onde há necessidade de amor, e atua em consequência […]
Além disso, a caridade não deve ser um meio em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo. O amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins. Isso, porém, não significa que a ação caritativa deva, por assim dizer, deixar Deus e Cristo de lado. Sempre está em jogo o ser humano em sua totalidade. Muitas vezes, é precisamente a ausência de Deus a raiz mais profunda do sofrimento. Quem realiza a caridade em nome da Igreja, nunca procurará impor aos outros a fé da Igreja. Sabe que o amor, na sua pureza e gratuidade, é o melhor testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar. O cristão sabe quando é tempo de falar de Deus e quando é justo não o fazer, deixando falar somente o amor. Sabe que Deus é amor (cf. 1 Jo 4,8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que nada mais se faz a não ser amar.
(DCE 31)



