Num mundo hiperconectado, a onipresença da internet e das telas vem tornando a leitura cada vez mais superficial e fragmentada. Se até mesmo a dimensão pragmática do ato de ler – a consulta a livros de estudo ou jornais – vem perdendo força, que dizer da leitura literária? Professores e editores de vários países vêm emitindo repetidos alertas sobre o crescente desinteresse por textos literários. Nos últimos meses, tais apelos ganharam um reforço inesperado e original: a carta do Papa acerca do papel da literatura na educação.
O documento versa sobre a formação de sacerdotes, mas Francisco faz questão de ressaltar também o “valor da leitura de romances e poemas no caminho de amadurecimento pessoal” de “qualquer cristão” (n. 1). Contrapondo-se a quem considera tal atividade um mero passatempo ou hábito ultrapassado, ele afirma que essa atitude pode gerar “grave empobrecimento intelectual e espiritual” (n. 4).
O ponto de partida das reflexões é a constatação de que a literatura “brota da pessoa no que tem de mais irredutível, no seu mistério (…). É a vida que se torna consciente de si mesma quando, utilizando todos os recursos da linguagem, atinge a plenitude de expressão” (n. 5). A arte literária representa, pois, um meio privilegiado de acesso à cultura e ao coração humano.
Por isso, o Papa encoraja o olhar atento às formas de expressão do desejo e da busca por sentido do homem de qualquer época ou cultura. Trata-se de movimento semelhante ao realizado pelos Padres da Igreja no início da era cristã, quando o contato com a cultura clássica permitiu a compreensão da “polifonia da Revelação” (n. 10). Afinal, a literatura é um poderoso “telescópio” que permite ampliar a sensibilidade para abraçar as alegrias e dramas da vida de todo homem – a começar por nós mesmos. Desse modo, ela pode levar à interrogação sobre o sentido da existência, servindo até mesmo para “fazer eficazmente a experiência da vida” (n. 30).
Relembrando seu trabalho como educador, Francisco afirma que a leitura por obrigação costuma ser contraproducente: o ideal é estimular os jovens a descobrir livremente o prazer da leitura, encontrando livros que se tornem seus “companheiros de viagem” (n. 7). Vale notar que o Papa não propõe apenas a leitura de obras selecionadas por seu suposto caráter “edificante”: ele sabe bem que a literatura pode nos levar a um “terreno instável”, no qual a liberdade de interpretação não deve ser cerceada e não há mensagens definidas a priori (n. 29). Daí que, entre os autores mencionados na carta, figurem alguns não cristãos, como Proust e o argentino Borges.
Isso, porém, não significa ceder à fácil tentação do relativismo: o documento alude ao necessário trabalho de “discernimento evangélico da cultura”, por meio do qual o cristão pode tornar-se, como São Paulo, um “colecionador de sementes”, valorizando o que toda experiência autenticamente humana carrega de verdadeiro (n. 12, 21, 26-29, 38).
Segundo T. S. Eliot, a crise religiosa atual resulta de uma “generalizada incapacidade emocional”: nesse sentido, completa o Papa, “o problema da fé nos dias de hoje não é, em primeiro lugar, o de acreditar mais ou acreditar menos em proposições doutrinais. Liga-se antes à incapacidade de tantos se comoverem perante Deus, a sua criação e os outros seres humanos” (n. 22). Em semelhante contexto, a literatura – poderoso instrumento para enriquecer nossa humanidade – adquire grande peso cultural. Afinal, como dizia antigo autor latino, o verdadeiro cristão não pode ser indiferente a nada do que é humano (n. 37).