Uma sabedoria orientada para o futuro

O Papa Francisco faz um convite para que a reflexão sobre a inteligência artificial coloque o ser humano no centro, zelando pela sua integralidade, enriquecida pela pluralidade de perspectivas que é representada em um poliedro (Evangelii gaudium, EG 236)

Por João Cortese e Francisco Borba Ribeiro Neto

Em um momento no qual o mundo se divide entre a fascinação e o terror diante dos avanços da inteligência artificial (IA), impressiona que uma visão equilibrada e propositiva sobre um tema tão atual possa vir de Francisco, um senhor com mais de 80 anos. É a sabedoria que vem de um ancião, mostrando a contribuição, sempre lembrada pelo Papa, que os idosos podem dar.

Sabedoria que não vem apenas de uma inteligência individual, mas é um produto comunitário, fruto de um diálogo – possibilitado pela comunhão cristã – em que várias pessoas, com formações e interesses diversos, convergem na busca do bem e da verdade. Mesmo que existam interesses econômicos, políticos e até acadêmicos entre os muitos colaboradores da reflexão eclesial sobre a IA, mesmo que os participantes desse diálogo nem sempre compartilhem a mesma fé, o resultado desse esforço conjunto é orientado por esse desejo do bem e da verdade. Um discernimento adequado sobre uma problemática tão nova e complexa seria impossível individualmente. É graças a esse apoio da comunidade que se torna possível ao Papa ter um juízo tão claro e bem-informado sobre a IA. 

Partindo do amor à pessoa. O Papa apresenta uma verdadeira atenção ao ser humano, um interesse humanista, que dá coesão a toda a reflexão. Quando se tem um olhar realista para a condição humana, buscando, com amor, o bem das pessoas, fica muito mais fácil identificar tanto as contribuições quanto os perigos da IA. Mais: não se pode esquecer que esse olhar humanista nasce da fé, que dá a esperança e o cuidado necessários para não se deixar dominar pelo medo, nem se iludir com os avanços da técnica.

O Papa nos apresenta uma visão equilibrada da IA, tema tanto fascinante quanto desafiador, considerando tanto suas potencialidades quanto os temores que suscita, evitando tanto um maravilhamento ingênuo quanto uma fobia desmesurada. Tal sabedoria, no contexto do humanismo cristão, coloca o ser humano na posição justa para avaliar os problemas do mundo. Contudo, é claro, ainda existe um longo caminho pela frente, com vistas a um uso sábio e humanizado da IA – nesse sentido, como ressaltado acima, a colaboração de diversas pessoas nessa reflexão urgente se faz da maior necessidade.

A riqueza de uma Tradição ilumina o futuro. É nesse sentido que se revela a importância da tradição, que ao mesmo tempo aprende com o novo e resgata o valor do que já existe, trazendo um olhar de sabedoria sobre o ser humano, contemplando tanto sua grandeza quanto suas fraquezas. Nas palavras de Francisco: “Sinto esta tradição da Igreja, que não é uma coisa de museu. A tradição é como as raízes, que te dão a seiva para crescer. Não te tornarás como as raízes! Tu florescerás, a árvore crescerá, darás fruto e as sementes serão raízes para os outros. A Tradição da Igreja está sempre em movimento”. 

Com esse olhar sobre a dimensão humana da questão da IA, o Papa adverte que se trata de uma questão de identidade: “já é legítimo supor que o uso [da IA] influenciará cada vez mais a nossa forma de viver, as nossas relações sociais e, no futuro, até mesmo a maneira como concebemos a nossa identidade como seres humanos” [discurso na reunião do G7]. A reflexão sobre a IA traz, portanto, como por um espelho, a reflexão antropológica essencial: quem é o ser humano?

Respeitando a pluralidade. Ao mesmo tempo, o Papa Francisco indica em seus discursos que tal sabedoria sobre quem é o ser humano não deve apagar a diversidade que existe entre as pessoas e entre os povos, inestimável riqueza da humanidade. Justamente por sua padronização e por seu mecanismo que tende a reproduzir mais do mesmo, a IA traz o risco do apagamento de tal diversidade, massificando uma certa visão de mundo. Nesse sentido, pode-se pensar que a perda de distintos olhares, oriundos de uma diversidade de línguas e etnias, é um dos riscos do uso generalizado e sem reflexão da IA. 

“A revolução digital pode tornar-nos mais livres, mas certamente não conseguirá fazê-lo se nos prender nos modelos designados hoje como echo chamber (câmara de eco). Nesses casos, em vez de aumentar o pluralismo da informação, corre-se o risco de se perder em um pântano anônimo, favorecendo os interesses do mercado ou do poder. Não é aceitável que a utilização da inteligência artificial conduza a um pensamento anônimo, a uma montagem de dados não certificados, a uma desresponsabilização editorial coletiva. A representação da realidade por big data, embora funcional para a gestão das máquinas, implica, na realidade, em uma perda substancial da verdade das coisas, o que dificulta a comunicação interpessoal e corre o risco de danificar a nossa própria humanidade. A informação não pode ser separada da relação existencial: implica o corpo, o situar-se na realidade; pede para correlacionar não apenas dados, mas experiências; exige o rosto, o olhar, a compaixão e ainda a partilha.” (Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2024)

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