O povo brasileiro sai particularmente fraturado das últimas eleições – e a fratura, antes de causar escândalo, indica a necessidade de uma cura. Sendo assim, nós nos vimos chamados a publicar este primeiro Caderno Fé e Cidadania (um projeto que pensávamos iniciar só em 2023) sobre o tema da reconciliação diante dos conflitos ideológicos e partidários, à luz da Doutrina Social da Igreja.
É forçoso reconhecer que somos uma sociedade magoada e ressentida com a política. O fisiologismo e o corporativismo, a defesa dos próprios interesses em lugar do bem comum, as decisões autocráticas e as interpretações criativas do próprio arcabouço legal da nação geram desgosto, indignação e revolta. Se analisarmos a história recente do País, veremos que tanto a esquerda quanto a direita, sem excluir o próprio centro, deram e têm motivos para esse ressentimento. Todo o espectro político-ideológico é, simultaneamente, causador e vítima desse fenômeno. Sendo assim, é compreensível que nos separemos em várias posições, nenhuma delas conseguindo se impor hegemonicamente sobre as demais. O problema é que essa pluralidade vem acompanhada de sentimentos negativos, agressividade e intransigência, impedindo o reconhecimento de alguns pontos em comum mínimos que sustentem um projeto compartilhado de futuro, absolutamente necessário para o desenvolvimento integral das pessoas e da sociedade como um todo.
Antes de sairmos numa busca frenética por culpados, precisamos curar as feridas causadas por essa divisão, encontrarmos a posição justa diante dos problemas, sermos capazes de dialogar com os amigos que pensam diferente – buscando não tanto uma concordância total, mas pelo menos o reconhecimento de alguns pontos fundamentais em comum. A Igreja, lembra São João Paulo II, na exortação apostólica Reconciliatio et Paenitentia, tem o dever de ajudar a reconciliação nas sociedades divididas, mas para isso tem ela mesma que se reconciliar internamente. Nesse documento, publicado há 38 anos, o papa polonês apresenta as raízes da divisão no coração do ser humano, mostrando os caminhos pessoais e comunitários para uma justa reconciliação. Sendo assim, não poderíamos deixar de apresentar alguns trechos desse documento neste Caderno.
Em vários trechos da Fratelli tutti, também retomada neste Caderno, o Papa Francisco fala de percursos para a reconciliação e o perdão, de uma “arquitetura” da paz, a ser realizada por governos e instituições da sociedade, e de um “artesanato” da paz, que implica o compromisso pessoal de cada um de nós. Francisco nos lembra de que a verdadeira paz não esquece dos conflitos, nem procura atuar como se eles não tivessem existido, mas os supera na experiência do perdão e no diálogo.
Mas como podemos praticar o perdão e buscar o diálogo quando nosso coração está inquieto, magoado e ressentido, até mesmo cheio de raiva? Ana Lydia Sawaya, monja camaldulense do Mosteiro da Encarnação, nos apresenta a experiência religiosa da pessoa pacificada pela confiança em Deus. Mostra que o cristão consciente da ação de Deus na história se descobre sereno e tranquilo, podendo tornar-se protagonista de processos de perdão e reconciliação, capaz de viver a política sem desespero, e sim com uma justa esperança.
Por fim, contamos com a contribuição do Padre Leonel Narváez, colombiano, ganhador da Menção Honrosa do Prêmio Unesco de Educação para a Paz. Com as Escolas de Perdão e Reconciliação, Padre Leonel desenvolve um intenso trabalho de pacificação em seu país, até hoje vítima dos intensos conflitos armados deflagrados desde a década de 1960. Neste difícil contexto, aprendemos que a verdade é uma pré-condição para que a justiça e o perdão aconteçam, num verdadeiro caminho de cura tanto das pessoas vitimadas quanto das comunidades e sociedades fraturadas pelo conflito.