A fome em gestantes e crianças repercute por toda a vida e atravessa gerações

Assunto foi tratado em evento na Faculdade de Medicina da USP, inspirado na temática da Campanha da Fraternidade deste ano

United Nations Photos

Os alertas feitos pela Campanha da Fraternidade de 2023 acerca da fome, e especialmente de como este flagelo afeta gestantes, bebês, crianças e adolescentes mais pobres, não passaram despercebidos por dois professores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP): Marco Aurelio Knippel Galletta, do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia; e Alexandre Archanjo Ferraro, do Departamento de Pediatria.

Católicos, eles organizaram o evento “Fome e Saúde: implicações médicas da fome no Brasil”, realizado na quinta-feira, 20, na FMUSP, no qual foi refletido o impacto médico da fome no início da vida e suas repercussões ao longo do tempo. Também houve um panorama sobre as políticas públicas e outras iniciativas de combate à fome no País.

A DESNUTRIÇÃO NA GRAVIDEZ E O IMPACTO SOBRE O FETO

Galletta destacou que já tem sido possível mensurar nas gestantes os impactos do aumento da fome. Um dos exemplos é que, em média, na gravidez uma mulher tem o acréscimo de peso de 11kg – já que além do feto, terá aumento do peso do útero, a placenta e o liquido amniótico – mas que hoje esta média está em 6kg no Brasil.

Ele explicou que a subnutrição da gestante gera impactos no desenvolvimento do feto, uma vez que a placenta não se forma de modo adequado. Em uma gestante anêmica, por exemplo, há déficits de nutrientes e de oxigenação para o feto, podendo ocasionar a morte fetal ou que o bebê nasça com peso abaixo do ideal.

Marco Aurelio Galletta

“O ambiente ruim da placenta leva a partos prematuros, e, assim, há uma taxa maior de recém-nascidos com baixo peso. Já existem trabalhos que mostram uma maior taxa de desconforto respiratório nessas crianças, até pela complicação da oxigenação intrauterina; e dependendo de quando for a privação alimentar dessas mulheres, teremos maiores taxas de abortamento e de más-formações fetais”, detalhou.

Galletta exemplificou que quando a gestante não consome proteína animal na quantidade ideal, deixa de ingerir aminoácidos essenciais para a boa formação do feto; se é privada de alimentos com cálcio, será mais propensa à hipertensão; e as desnutridas podem ter endometrite, a inflamação do endométrio, camada que reveste a parte interna do útero.

MARCAS POR TODA A VIDA

Alexandre Ferraro

Alexandre Ferraro falou sobre as repercussões a longo prazo da desnutrição intrauterina. Ele mencionou a Hipótese da Programação Fetal, desenvolvida a partir das pesquisas do epidemiologista David Barker (1938-2013), segundo o qual as condições a que um feto ou criança é submetida repercutem por toda a sua vida. Barker notou que a distribuição geográfica dos adultos que morreram por doenças cardiovasculares entre 1968 e 1978 na Inglaterra e no País de Gales era similar à distribuição da mortalidade infantil nestes locais entre 1901 e 1910.

Ferraro mencionou outros exemplos de populações que ao longo do século XX viveram situações de extrema privação de alimentos. Os que nasceram sob tais condições tiveram na idade adulta maior incidência de diabetes, doenças cardiovasculares, esquizofrenia, depressão e mau desempenho cognitivo.

Abordando conceitos da Medicina evolucionista, Ferraro recordou que quando o feto se desenvolve em um ambiente que não lhe pareça seguro, ou seja, sua mãe não se alimenta como deveria e vive em condições socioeconômicas inadequadas, já dentro do útero ele busca se adaptar, tendo um desenvolvimento que prioriza a sobrevivência à longevidade. Isso ajuda a explicar o fato de que nas realidades mais pobres nasçam mais crianças prematuras ou com menor peso, e com menos neurônios e néfrons (responsáveis pelo funcionamento dos rins). Além disso, se o bebê for uma menina, já carregará em suas células reprodutivas as marcas de desnutrição sofrida por sua mãe. Assim, se esta menina, quando adulta, tiver uma filha, esta também já terá os sinais da desnutrição: “Já não temos mais só uma questão de mãe e filha, mas transgeracional”, enfatizou.

Ferraro ressaltou que deve ser dada ampla atenção às condições de alimentação do ser humano em seus primeiros mil dias de vida – de sua concepção até os 2 anos, mas que até os 20 anos de idade ainda é possível recuperar em parte os déficits nutricionais. “A fome nos primeiros anos de vida está relacionada a menor escolaridade, menores salários e menor desenvolvimento social. Investir um dólar para combater a fome implica um ganho muito superior se considerarmos os efeitos 30 anos depois”, disse ao O SÃO PAULO.

O DIREITO À ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL

Silvia Médici Saldiva

Também participante do evento, a nutricionista Silvia Médici Saldiva detalhou que a alimentação saudável é um direito constitucional e que existem no Brasil a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), com diretrizes voltadas a promover os direitos humanos à saúde e à alimentação, e a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), que assegura o direito ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente.

A nutricionista recordou a existência da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, pela qual é possível mensurar a insegurança alimentar das famílias, condição que muitas passaram a vivenciar durante a pandemia de COVID-19.

“O processo de insegurança alimentar começa com a perda da qualidade da alimentação, com a família tendo dificuldade de acesso aos alimentos ou falta de dinheiro para comprá-los. O passo seguinte é a privação ou instabilidade no acesso tanto qualitativo quanto quantitativo. Nessa fase, os adultos abrem mão de algumas refeições para que as crianças possam comer. E, por fim, a fome afeta as crianças, é o cenário da insegurança alimentar grave”, explicou.

AÇÕES CONCRETAS PARA O COMBATE À FOME

Na parte final do evento, houve o relato de experiências de combate à fome e à mánutrição.

Gisela Solymos e Bernardo Cury falaram sobre o Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren), fundado em 1993, que se dedica ao diagnóstico, tratamento, pesquisa e ensino relativo à subnutrição e obesidade infanto-juvenil, com foco na população socioeconomicamente vulnerável.

Cury, que é psicólogo no centro de educação infantil do Cren na Vila Jacuí, na zona Leste, recordou que regularmente são feitas visitas às famílias das crianças atendidas para saber suas condições de vida. Lembrou, ainda, que durante a pandemia aquelas em maior vulnerabilidade passaram a receber cestas básicas, contendo também alimentos como verduras e plantas alimentícias não convencionais (Panc’s), compradas de grupos de agricultura familiar.

Daniel Aparecido, da Aliança de Misericórdia, apresentou os trabalhos feitos por esse movimento eclesial na Comunidade do Moinho, na região central, especialmente com as crianças e adolescentes atendidos no CCA São Domingos Sávio. No local, a Aliança também administra uma escola de ensino fundamental. O foco é o desenvolvimento integral dos estudantes – com a garantia de uma alimentação saudável – e os trabalhos incidem positivamente em toda a Comunidade, que tem cerca de 5 mil pessoas.

Daniel Aparecido

A íntegra do evento pode ser vista aqui

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