Capital passa a ter lei para atenção a crianças e adolescentes que vivem ou permanecem nas ruas

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Entre os milhares de pessoas que têm a rua como morada na capital paulista ou nela passam a maior parte de seu tempo, cerca de 3,8 mil não tem mais do que 18 anos de idade. Os dados são do Censo feito pela Prefeitura em maio do ano passado.

A partir de agora, essa população conta com uma legislação para a garantia de seus direitos e de suas famílias, a Política Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua e na Rua, a lei 17.923/2023, promulgada pelo prefeito Ricardo Nunes em 10 abril, após ter sido aprovada pela Câmara Municipal no projeto de lei 253/21, que teve coautoria de nove vereadores, de quatro partidos.

Estruturada em 38 artigos, a lei, cuja regulamentação deve ser feita pela Prefeitura em até 120 dias, considera como crianças e adolescentes em situação de rua e na rua, conforme seu artigo 2o, aqueles com até 18 anos de idade incompletos, “em desenvolvimento com direitos violados, em situação de vulnerabilidade e/ou risco pessoal e social por motivo de rompimento ou fragilidade do cuidado e dos vínculos familiares e comunitários, em situação de pobreza ou pobreza extrema, com dificuldade de acesso ou permanência nas políticas públicas, sendo caracterizados por sua heterogeneidade”.

É voltada tanto para crianças e adolescentes em situação de rua – aqueles que têm como espaço de moradia, de modo permanente ou intermitente, os logradouros públicos ou áreas degradadas – quanto os que ficam nas ruas – ou seja, fazem destes locais seu espaço de sobrevivência e trabalho.

CONSTRUÇÃO COLETIVA E PARTICIPAÇÃO DA IGREJA

O PL 253/21 foi fruto de um processo iniciado em 2013, quando o Ministério Público, a partir de denúncias, instaurou um inquérito civil para averiguar a efetividade das ações da Prefeitura em favor das crianças e adolescentes em situação de rua. Depois, diferentes atores da sociedade civil, incluindo a Pastoral do Menor, dialogaram sobre o problema e formularam, entre 2015 e 2018, o “Subsídio para a elaboração da política municipal de atenção a crianças e adolescentes em situação de rua e na rua na cidade de São Paulo”, que foi a base do texto original do PL 253/2021.

“Podemos dizer que foi um movimento apartidário em defesa do direito da criança e do adolescente, e que traduziu o sentimento da população do munícipio, sem deixar de respeitar o protagonismo do público alvo. Crianças e adolescentes em situação de e na rua foram ouvidos, em estilo de assembleia nas próprias ruas, antes de chegarmos à construção do projeto de lei”, detalhou, ao O SÃO PAULO, Sueli Camargo, coordenadora arquidiocesana da Pastoral do Menor.

Em setembro de 2021, a Pastoral do Menor, em parceria com o Escritório Modelo “Dom Paulo Evaristo Arns” e o Grupo de Trabalho Direitos da Criança e do Adolescente, ambos da PUC-SP, organizou um seminário on-line para a apresentação do PL.

“Esta lei é resultado de um esforço coletivo, mas nesse processo a Igreja teve um papel fundamental, por meio da Pastoral do Menor, colaborando para a forma e o respeito com que o poder público olhou para este projeto de lei”, afirmou Sueli.

AMPLA ATENÇÃO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Entre os princípios dessa política municipal está o de que as crianças e os adolescentes em situação de rua e na rua são “sujeitos de direitos, pessoas em desenvolvimento e público prioritário das políticas públicas, reconhecendo seu contexto social e familiar, suas trajetórias de vida, suas demandas e interesses como dimensões interdependentes e buscando uma atuação intersetorial na garantia da proteção integral”, consta no artigo 3º.

A lei também indica que a rua é um espaço de violação de direitos e de extremo risco, estando tais crianças e adolescentes mais sujeitos ao trabalho infantil, a práticas análogas à escravidão, a serem cooptadas para a prostituição ou produção de pornografia, bem como para atividades ilícitas, especialmente a produção e o tráfico de entorpecentes.

Diante desses e outros riscos, se determina que o poder público estabeleça “protocolos e fluxos integrados para o atendimento das violações de direitos e violências contra crianças e adolescentes em situação de rua e na rua, divulgando e disponibilizando ouvidorias e canais de comunicação para o recebimento de denúncias e reivindicações de direitos”, lê-se no artigo 36.

Para atender a essas crianças e adolescentes, serão desenvolvidas ações intersetoriais em assistência social, direitos humanos, esporte, cultura, lazer, educação (incluindo a garantia de matrícula nas unidades de ensino e a busca ativa daqueles que estiverem fora da escola ou em atraso no ciclo escolar), habitação (com o poder público devendo oferecer soluções habitacionais definitivas a seus familiares), saúde (com a garantia de que tenham acesso universal e igualitário aos atendimentos no serviço de saúde) e trabalho e renda (com a promoção de políticas de geração de renda e empregabilidade a seus familiares).

CONHEÇA OS OBJETIVOS DA LEI 17.923/2023

(Síntese do que consta no Art. 5º da legislação)

  • Promover os direitos de crianças e adolescentes em situação de rua e na rua;
  • Garantir a atuação na prevenção e promoção dos direitos de suas famílias;
  • Enfrentar o trabalho infantil, considerando as demandas de suas famílias;
  • Qualificar de forma continuada os agentes públicos e orientar os serviços para o desenvolvimento de metodologias de educação social de rua e outras abordagens de atendimento;
  • Viabilizar a gestão da informação voltada para a integração intersetorial das informações produzidas nos atendimentos e para a produção de indicadores e metas que possibilitem o monitoramento e a avaliação da política;
  • Produzir conhecimento e incentivar a realização de diálogos e pesquisas sobre a temática das crianças e adolescentes nessas condições;
  • Promover ações para a prevenção do uso de álcool e/ou outras drogas por estas crianças e adolescentes, bem como fortalecer estratégias de cuidado daquelas que já usam tais substâncias.

Deverão também ser implementadas ações conjuntas para a elaboração de instrumentos e ferramentas que viabilizem a comunicação entre as secretarias e o compartilhamento de informações sobre o atendimento de cada uma dessas crianças e adolescentes.

Além disso, as famílias com crianças e adolescentes nesta condição de vida poderão ter acesso a programas de transferência de renda e outros benefícios, e ao adolescente que não conviva com seus familiares poderá ser concedido um subsídio financeiro – o Bolsa-convivência –, por tempo limitado, para que retorne a tal convívio, fortaleça os vínculos familiares e alcance a autonomia para a sua subsistência.

CENSO PERIÓDICO

A nova legislação também prevê que seja realizado até o final do segundo ano de cada mandato do Poder Executivo Municipal uma pesquisa censitária sobre as crianças e adolescentes em situação de rua e na rua. A partir dela será possível, por exemplo, balizar a articulação da rede socioassistencial, considerando as dimensões territoriais de onde está essa população, com o objetivo de implementar os serviços especializados e o acompanhamento dos casos de maneira individualizada.

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