Com plano conjunto, Prefeitura e Governo do Estado esperam acabar com a Cracolândia

Novo plano de ações envolve protocolos unificados para resgatar dependentes químicos na Cracolândia
Luciney Martins/O SÃO PAULO

Pelas ruas dos Campos Elísios, Luz e Santa Ifigênia, na região central, há pelo menos 30 anos se tornou rotineiro ver pessoas viciadas em drogas, especialmente no crack, vivendo em condições subumanas, muitas com dívidas impagáveis com traficantes e que cometem pequenos delitos para manter o vício.

Por muitos anos, esses usuários de drogas se concentraram na chamada Cracolândia – no entorno da Rua Helvétia e da Alameda Cleveland –, mas hoje estão espalhados de seis a oito locais da região central.

Em 24 de janeiro, o Governo de São Paulo e a Prefeitura da capital anunciaram um plano conjunto de ações com vistas a recuperar a condição de vida dessas pessoas e revitalizar a região central. Não se trata de uma iniciativa inédita, mas o diferencial desta vez é que desde o princípio foi pensada em conjunto pelas duas esferas do Poder Executivo, em diálogo com profissionais das áreas da Saúde, Segurança Pública e Assistência Social, e com o apoio do Tribunal de Justiça de São Paulo, do Ministério Público Estadual e da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. 

Estruturação

O Plano está estruturado em quatro pilares:

  • Abordagem qualificada aos usuários por meio de profissionais especializados em dependência química;
     
  • Oferta de várias linhas de cuidado para tratamento da dependência química. “Cada usuário é uma pessoa diferente da outra, precisa de jornadas diferentes de cuidados”, afirmou o vice-governador Felício Ramuth, coordenador do plano;  
  • Integração completa da jornada de cuidados, com acompanhamento nos equipamentos estaduais e municipais da área social, tendo um protocolo intersetorial multidisciplinar entre a Prefeitura e o Estado para monitorar a trajetória do usuário nas redes de acolhimento, tratamento e reinserção.
  • Plena oferta de serviços públicos em todas as frentes de atuação, com a atualização do Cadastro Único daqueles que participarão das iniciativas. 

Operacionalização 

Haverá a ampliação de estruturas já existentes, investimento em logística e agilidade em alguns protocolos:

  • O Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod), em frente ao Parque da Luz, se tornará um hub de atendimento aos usuários de substâncias psicoativas e seus familiares. Haverá uma casa de passagem com 40 vagas, espaços para atuação de representantes do Ministério Público, do Poder Judiciário e da sociedade civil;
  • As atividades do plano de ações serão monitoradas por 500 câmeras inteligentes interligadas ao Centro Integrado de Comando e Controle (CICC) da Secretaria Estadual da Segurança Pública; 
  • As ações de policiamento preventivo na área serão intensificadas pela Polícia Militar e pela Guarda Civil Metropolitana, bem como o trabalho de polícia investigativa e judiciária pela Polícia Civil. Já o município atuará mais diretamente na coordenação da atividade delegada. “O policiamento ostensivo é fundamental, pois temos de impedir o livre fluxo de drogas, a livre ação do tráfico”, declarou o governador Tarcísio de Freitas;
  • As equipes da Polícia Militar poderão fazer no próprio local o registro de ocorrência para fins judiciais, repassando-o diretamente às autoridades judiciárias, o que evitará o deslocamento dos policiais até a delegacia, salvo em casos de flagrante delito.
  • O Governo paulista criará mil vagas em comunidades terapêuticas para o atendimento aos dependentes químicos, 500 destas imediatamente; 
  • Haverá mais 264 leitos para desintoxicação em hospitais gerais, no Instituto de Estudo de Álcool da Universidade de São Paulo (USP Cotoxó) e na Unidade Helvétia;
  • 10 mil pessoas cadastradas nos serviços sociais da Prefeitura receberão o Auxílio Reencontro, que pode variar de R$ 600 a R$ 1.200;
  • A Prefeitura e Governo paulista disponibilizarão aluguel social de R$ 1.200 para até 5 mil famílias já atendidas em equipamentos públicos municipais, como abrigos e hotéis. 
  • Serão entregues 190 novos apartamentos na Alameda Cleveland até o fim deste trimestre, e se construíram 600 unidades habitacionais na região dos Campos Elísios. Também haverá a revitalização da Praça da Sé e do entorno da estação Brás da CPTM.

Olhar integrado

“A questão da Cracolândia não é só de polícia, nem só de saúde, de assistência social, de habitação ou de revitalização do centro. Envolve todas essas políticas juntas. Temos de partir do pressuposto que cada pessoa é uma e a necessidade de tratamento em cada momento tem de ser observada. Quando conseguimos estabelecer a relação de confiança e a pessoa diz o que está precisando, é nessa hora que deve ocorrer o encaminhamento, e para isso é preciso ter várias opções para acolhê-la”, explicou o governador de São Paulo.

Ricardo Nunes destacou que com a união de todos será possível salvar vidas e assegurar o direito de bem viver na região central: “Precisamos ter todo o foco para tratar da saúde das pessoas que estão ali acabando com a própria vida no crack. É preciso colocar o traficante atrás das grades, mas também olhar para o comerciante que tem o direito de abrir a porta do seu comércio; para o morador que tem o direito de entrar e sair de sua casa ou condomínio; e o direito das demais pessoas de andar nas calçadas e de ter segurança”.

Justiça terapêutica

O plano de ações também contempla a adoção da Justiça Terapêutica, prevista na Lei Antidrogas nacional (lei 11.343/2006). Na prática, pessoas que cometam delitos de menor potencial ofensivo ligados à dependência química poderão optar pelo encaminhamento para tratamento em unidades de acolhimento e internação em vez de serem presas. Essa alternativa, porém, não será possível para quem já tenha algum benefício de progressão de pena e seja flagrado em atitude criminosa.

Antes de que seja aplicada, a medida está sendo analisada por um grupo formado por membros da Prefeitura, Governo do Estado, Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública.

Internação compulsória

No plano, não se descarta a adoção da internação compulsória dos usuários. Nesta, não é necessário que a pessoa nem seus familiares autorizem a internação, uma vez que esta ocorre por determinação de um juiz, após haver o pedido formal de um médico, atestando que o usuário não tem domínio sobre a própria condição psicológica e física. 

Tarcísio de Freitas assegurou que essa internação será adotada apenas como último recurso: “A internação compulsória sempre leva a muito questionamento, inclusive judicial, por isso será a última opção, mas não pode ser descartada. Antes, vamos trabalhar com todas as outras opções de acolhimento e de abordagem”.  

Em recente entrevista à rádio 9 de Julho, o prefeito de São Paulo defendeu que se adote a internação compulsória em situações extremas. “Temos, até como compromisso cristão, a obrigação de ajudar aquelas pessoas que após tantos anos de uso do crack não tenham mais discernimento sobre a própria vida. Recentemente, fizemos em 118 usuários de crack lá da Cracolândia o exame de espirometria [que mede a quantidade e fluxo de ar nos pulmões]. Metade deles está com comprometimento dos pulmões. Portanto, se o médico receitar a internação compulsória, a Prefeitura dará as condições para que seja realizada e se salve vidas.”

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