Além do impacto geopolítico, a tensão entre a Rússia e a Ucrânia e o temor de um conflito armado iminente entre os dois países do Leste Europeu afetam diretamente a vida dos cristãos ucranianos, cujas divisões se misturam com histórico geopolítico da região.
A Rússia e a ex-república soviética da Ucrânia vivem uma relação turbulenta desde a primeira década do século XXI, motivada, sobretudo, pela aproximação dos ucranianos ao Ocidente. Em 2013, por pressão da Rússia, o governo ucraniano desistiu de um acordo que poderia pavimentar a entrada do país na União Europeia. Os anos seguintes foram marcados pela anexação pela Rússia da Península da Crimeia, sede da frota russa no Mar Negro, cedida à Ucrânia na era soviética; pelo conflito entre separatistas pró-Moscou e o exército local no Leste ucraniano; e pela retomada da candidatura de Kiev a uma vaga na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Em 2014, quando a Rússia formalizou a controversa anexação territorial da Crimeia, o presidente russo, Vladimir Putin, usou o seguinte argumento: “Tudo na Crimeia fala da nossa história partilhada e orgulho. É o lugar da antiga Quersoneso, onde o príncipe Vladimir foi batizado. O seu feito espiritual de adotar a Ortodoxia predeterminou a base geral da cultura, civilização e valores humanos que unem os povos da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia”.
De fato, ao longo das últimas duas décadas, o Cristianismo tradicional, e em particular a Igreja Ortodoxa Russa, se tornou uma das principais ferramentas do poder na Rússia de Putin, especialmente no que toca ao conflito com a Ucrânia, reaquecido nos últimos meses.
HISTÓRIA
Após o Grande Cisma de 1054, que dividiu as igrejas do Ocidente (católica) e do Oriente (ortodoxa), o Cristianismo chegou ao território então conhecido como a Rússia de Kiev (uma união de tribos eslavas que habitavam uma grande faixa do Leste Europeu que hoje corresponde a partes da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia). O batismo do príncipe Vladimir, então líder do bloco, no século X, teve um papel determinante na cristianização da região.
Em 1589, a Igreja russa, até então dependente do patriarcado de Constantinopla, passou a ser autocéfala (independente), tendo um patriarca próprio, que gozava de grande influência em termos políticos e religiosos no país, o que incluía o legado cristão de Kiev. Na década seguinte, a maioria dos bispos ortodoxos ucranianos optou pela união com a Igreja de Roma, nascendo, assim, a Igreja Greco-Católica Ucraniana, fiel ao Papa e considerada por Moscou como “traidora” da ortodoxia.
No século XVIII, o Czar Pedro I substituiu a autoridade do patriarca pelo Santo Sínodo, um organismo que, na prática, era uma espécie de um ministério oficial do Império Russo. Em 1917, a Igreja Ortodoxa restaurou o patriarcado. Porém, a ascensão do regime comunista acentuou a nacionalização da Igreja. Sob Stalin, os greco-católicos sofreram perseguição justamente por estarem vinculados ao Ocidente.
O controle da Igreja Ortodoxa pelo Estado se manteve durante todo o período da União Soviética e, continua a ser, em grande medida, usada pela Rússia de Putin como ferramenta geopolítica. Com mais de 90 milhões de fiéis, o Patriarcado de Moscou, hoje liderado por Kirill, também tem jurisdição sobre comunidades ortodoxas fora das fronteiras nacionais, sendo a maior delas na Ucrânia.
NOVAS DIVISÕES
Com o fim da União Soviética, em 1991, a Igreja Ortodoxa na Ucrânia acabou se desmembrando em três partes: a Ortodoxa da Ucrânia, ligada a Moscou e maioritária; o Patriarcado de Kiev (minoritário e não reconhecido por nenhuma igreja oficial); e a Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia (autoproclamada em 1921 e sem reconhecimento internacional).
Em 2018, já num contexto de enorme instabilidade geopolítica entre a Rússia e a Ucrânia, a tensão aprofundou-se também no domínio religioso. Durante um concílio das igrejas ortodoxas realizado na ilha grega de Creta, todos os representantes do Patriarcado de Kiev e da Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia, bem como dois membros da Igreja Ortodoxa da Ucrânia, votaram favoravelmente pela fusão das denominações religiosas e a criação de uma única Igreja Ortodoxa Ucraniana, totalmente independente de qualquer outro Patriarcado e com sede em Kiev. A decisão desagradou ao Patriarca de Moscou, que perdeu soberania religiosa sobre a Ucrânia, mas foi aceita pelo Patriarca de Constantinopla Bartolomeu – considerado o primus inter pares (primeiro entre iguais) da comunhão ortodoxa –, que no início de 2019 assinou o decreto e legitimou a Igreja Ortodoxa Ucraniana com sede em Kiev.
O Patriarca de Moscou, no entanto, não aceitou a decisão e rompeu as relações com Constantinopla, resultando em um cisma na ortodoxia. Atualmente, coexistem duas igrejas ortodoxas na Ucrânia: uma é seguida pelos fiéis pró-Rússia, outra pelos que defendem a independência. As motivações da atual divisão, portanto, são puramente políticas.
Na ocasião, Vladimir Putin veio a público classificar a independência da Igreja ucraniana como “um flagrante interferência na vida da Igreja” e uma ação política que “não tem nada a ver com a fé”, e acrescentou: “Reservamo-nos o direito de reagir e de fazer todos os possíveis para proteger os direitos humanos, incluindo a liberdade de religião”.
PREOCUPAÇÃO DOS CATÓLICOS
Na iminência de um novo conflito, o Arcebispo-mor da Igreja Greco-Católica Ucraniana, Dom Sviatoslav Shevchuk, lançou um apelo em favor da paz no momento em que diplomatas e líderes governamentais trabalham para alcançar compromissos e evitar uma escalada militar no conflito na fronteira com a Ucrânia. “Este não é mais um conflito bilateral entre a Ucrânia e a Rússia”, reitera Dom Sviatoslav, mas “uma escalada militar entre a Rússia e o Ocidente”. “Estamos sob ataque, sob perigo iminente e grave”, alertou o Arcebispo, em uma coletiva de imprensa no dia 8.
No Angelus do domingo, 13, o Papa Francisco fez um novo apelo pelos ucranianos. “As notícias que chegam da Ucrânia são preocupantes. Confio à intercessão da Virgem Maria e à consciência dos líderes políticos, para que sejam feitos todos os esforços pela paz”, afirmou, pedindo aos fiéis reunidos na Praça São Pedro que fizessem um instante de oração em silêncio.
O Santo Padre já havia convocado os católicos para um dia dedicado à oração pela Ucrânia em 26 de janeiro.