Gabriel Corrêa: ‘Os problemas estruturais da educação básica não serão resolvidos apenas no nível de cada uma das escolas’

O aumento do percentual de crianças no início do ensino fundamental que ainda não sabem ler e escrever, a menor quantidade de jovens matriculados no ensino médio e a estagnação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) 2021 geraram preocupação ao serem divulgados em 16 de setembro pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), vinculado ao Ministério da Educação. 

Todos pela Educação

O nível de aprendizagem dos estudantes foi mensurado por meio da prova do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), aplicada no final de 2021 àqueles do 2o, 5o e 9o ano do ensino fundamental e do 3o ano do ensino médio. A nota do Saeb e os níveis de aprovação e frequência dos alunos nas escolas compõem o Ideb, e o número de matriculados se refere a dados preliminares do Censo Escolar da Educação. 

Ao O SÃO PAULO, Gabriel Corrêa, líder de políticas educacionais da Todos pela Educação, alerta que os dados não expressam plenamente a realidade atual do ensino no Brasil, uma vez que o Saeb foi aplicado quando muitas das escolas ainda não tinham voltado com as aulas presenciais, mas revelam que há problemas da educação brasileira que foram ampliados durante a pandemia. 

No começo deste ano, a organização lançou a agenda estratégica “Educação Já 2022”, com apontamentos para melhorar a educação básica. A íntegra do documento pode ser lida em https://cutt.ly/UVZiQna.

Leia a seguir a íntegra da entrevista:

O SÃO PAULO – O fato de a prova do Saeb 2021 ter sido aplicada em novembro e dezembro do ano passado, quando boa parte das escolas ainda estava com atividades remotas, de algum modo interferiu no resultado aferido? 

Gabriel Corrêa – Esses dados precisam ser observados com muita cautela, especialmente pelo contexto muito atípico em que os estados brasileiros estavam na educação: alguns já haviam retomado as atividades presenciais, outros estavam com as escolas totalmente fechadas. Além disso, não temos uma outra informação que é muito importante: a taxa de participação nestas provas dos estudantes em cada estado e município, o que dificulta qualquer comparação que queiramos fazer, seja entre estados e municípios referente a 2021, seja a comparação geral de 2021 com 2019, uma vez que não há como comparar o resultado de um município em que 50% dos alunos tenham feito a prova com outro em que mais de 90% tenham feito. Em um contexto de pandemia, bem sabemos quem são estes estudantes que muito provavelmente não foram fazer as provas: os mais pobres e que estavam com menos contato com as atividades escolares. Esse alerta, portanto, é fundamental antes de olhar para os resultados do Saeb 2021. 

Feita essa ressalva, o que chama mais atenção nos resultados?

Os resultados mostram a queda no nível de aprendizagem dos estudantes brasileiros durante a pandemia, o que já era imaginado, e até se esperava uma queda maior, por isso é que olhamos esses resultados com cautela. Um dado que chama muito a atenção é o da alfabetização dos alunos do 2o ano do ensino fundamental, pois 33% desses estudantes não conseguiram nem ler uma palavra simples destacada de um texto, ou seja, estavam no nível mais preliminar do processo de alfabetização, quando já deveriam estar plenamente alfabetizados. Essas crianças que passaram o 1o e o 2o ano do ensino fundamental na pandemia precisam agora de uma atenção especial, pois se o processo dessa etapa de alfabetização não acontecer como é esperado, elas terão seu futuro completamente comprometido. 

Mas essa defasagem na alfabetização deve ser apenas atribuída à pandemia?

A pandemia e o fechamento tão prolongado de escolas que tivemos foram prejudiciais para a educação. As crianças sofreram muito e se não houver uma atenção especial com políticas públicas para alfabetizá-las, elas não vão conseguir aprender o que devem, tanto de português quanto de matemática, bem como das outras disciplinas, e terão sua trajetória escolar prejudicada. Evidentemente, os problemas de alfabetização não vieram apenas com a pandemia. Eles foram agravados na pandemia, mas o Brasil já vivia antes de 2020 aquilo que eu chamo de uma “tragédia silenciosa”, com um percentual muito alto de crianças que não conseguiam se alfabetizar plenamente logo no começo da trajetória escolar. Há no Brasil bons exemplos, o estado do Ceará é um deles, onde, mesmo em condições socioeconômicas adversas, se consegue alfabetizar as crianças logo no começo do ensino fundamental, e não à toa, antes da pandemia, esse estado tinha as maiores notas do ensino fundamental. No geral, porém, a situação nacional antes da pandemia já era muito crítica. Isso deve ser ponto de atenção para as próximas gestões, seja no Governo Federal, seja nos estados, para que tenhamos boas políticas de alfabetização, apoiando os municípios, que são majoritariamente os responsáveis pelos anos iniciais do ensino fundamental. 

Ao divulgar o Saeb, o ministro da Educação, Victor Godoy, declarou que irá enviar os resultados às escolas para que “possam usar esses dados para aprimorar e ajustar seus métodos e ferramentas de ensino”. Somente este ajuste em cada escola basta?

Os dados divulgados pelo Governo Federal são importantes para que as escolas se debrucem sobre eles e possam, eventualmente, nortear as suas ações de recuperação das aprendizagens com base nestes dados ou utilizando estes dados como mais um subsídio. Entretanto, sempre é preciso lembrar que os problemas estruturais da educação básica não serão resolvidos apenas no nível de cada uma das escolas. Assim, deve haver ações do poder público nos níveis dos municípios, dos estados e do Governo Federal, com o seu conjunto de escolas para que se melhore a qualidade da educação e se enfrente estes efeitos imediatos que a pandemia trouxe, entre os quais a elevação do risco da evasão escolar, os desafios relativos à saúde mental de estudantes e professores e o problema das aprendizagens, pois saímos de avaliações que estavam em uma trajetória ascendente, embora a passos lentos, e retrocedemos no nível de aprendizagem, o que é um grande alerta para a nossa sociedade e o poder público de que muito ainda precisa ser feito em políticas públicas para apoiar as escolas. 

No comparativo de 2021 para 2022, o número preliminar de matriculados no ensino médio foi 5,3% menor (347 mil matrículas a menos em termos absolutos). O que é possível ser feito para reverter esta queda? 

Esses são dados muito graves. Muitos especialistas e também nós, do Todos pela Educação, temos alertado nos últimos anos para um aumento muito forte na evasão escolar após estes dois anos de pandemia. O ensino médio público é de responsabilidade dos governos estaduais, assim, os estados têm a missão de, nos próximos anos, combater ainda mais fortemente a evasão escolar, observando que é ocasionada por fatores educacionais, como o baixo aprendizado, o pouco engajamento dos estudantes com a escola e o baixo interesse que eles têm na continuidade dos estudos em razão da qualidade educacional ofertada; mas há, também, fatores não educacionais, especialmente socioeconômicos, como a necessidade de trabalhar para complementar a renda familiar, a gravidez na adolescência, entre outros. Assim, é importante que os governos olhem para os fatores educacionais e os não educacionais. Por exemplo: programas de transferência de renda para os jovens, que sejam atrelados ao fato de eles estarem matriculados na escola, de estarem frequentando as aulas, são programas interessantes que precisam ser reforçados ou criados onde ainda não existem. É muito importante que os jovens estejam na escola e completem o ensino médio, pois aumenta o leque de oportunidades futuras para eles, especialmente no mercado de trabalho, com empregos mais dignos, que pagam mais, e, além desse benefício individual, para o País é fundamental ter uma população mais escolarizada, com uma educação de melhor qualidade, para que tenha mais condições de crescer e de se desenvolver econômica e socialmente, reduzindo as suas desigualdades. Um país que não consegue oferecer uma educação de qualidade para toda a sua população anda com o freio de mão puxado, tendo, assim, menos chances de crescer, se desenvolver e distribuir riqueza. 

Tem sido uma retórica muito recorrente dos candidatos a cargos executivos, nestas eleições, a defesa da escola em tempo integral. Quais devem ser os pilares dessa escola?

O mais importante é haver o entendimento de que não adianta apenas a escola ser de tempo integral, mas que ela o seja para viabilizar uma educação integral aos alunos. Não precisamos de mais tempo para fazer mais do mesmo, pois isso, inclusive, seria ruim para o aluno, que, no geral, já está desengajado com a escola de hoje, e vai se desengajar ainda mais se nada mudar e apenas o tempo aumentar. Desse modo, a escola de tempo integral precisa viabilizar um modelo pedagógico diferente, pelo qual o estudante consiga aprender mais, desenvolver competências socioemocionais, trabalhar seu protagonismo, especialmente nos adolescentes e nos jovens, e que ela possa estabelecer melhores vínculos entre os professores, e entre estes e os alunos, bem como preparar melhor os estudantes para seu próximo passo de vida, seja para a ida ao ensino superior, seja para o mercado de trabalho. Assim, o mais importante é vermos as escolas de tempo integral como uma forma de viabilizar um novo modelo de escola, que seja muito mais interessante, engajadora, em que os estudantes possam aprender mais e se desenvolver mais.

O Todos pela Educação elaborou o documento “Educação Já 2022: uma proposta de agenda estratégica para a educação básica brasileira”. Dos dez eixos apresentados, quais são os mais urgentes a serem colocados em prática pelos candidatos que saírem vitoriosos nas eleições aos governos estaduais e na presidencial?

As propostas que o Todos pela Educação apresenta no documento “Educação Já 2022” precisam ser vistas de forma sistêmica, ou seja, como um conjunto de ações que o Brasil precisa avançar nos próximos anos, para que possamos dar o salto de qualidade que a nossa educação tanto necessita. Assim, não se pode ignorar nenhuma daquelas agendas que são postas. Uma premissa central do próprio documento, indicada neste conjunto de recomendações, é que a educação se faz por pessoas, de modo que os profissionais que trabalham na área precisam ter uma atenção especial com as políticas públicas em relação à sua formação e o apoio. Essas pessoas são as que compõem as equipes gestoras dos sistemas educacionais, a gestão das escolas, os diretores, os coordenadores pedagógicos e as equipes gestoras, chegando até os professores em sala de aula. Assim, deve haver o entendimento de que qualquer mudança na educação, qualquer avanço, passa pelo elemento humano, pelas pessoas que fazem a educação acontecer. Desde a administração pública até a sala de aula, é preciso haver um foco muito grande nessa gestão de pessoas, para que tenhamos, cada vez mais, profissionais muito bem preparados, motivados e com todas as condições de fazer um bom trabalho em prol da aprendizagem dos estudantes. 

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