Medo de ‘cancelamento’ faz com que jovens evitem falar sobre política nas redes sociais

A cada dez entrevistados pelo Ipec, 6 evitam falar do tema nas redes; entretanto, maioria entre 16 e 18 anos deseja votar nas eleições de 2022. Especialistas temem que polarizações afastem os mais jovens das discussões sobre assuntos de interesse do bem comum

Rawpixel/Freepik

Pesquisa do Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria, nova denominação do antigo Ibope) feita com jovens de 16 a 34 anos aponta que seis em cada dez entrevistados não falam sobre política nas mídias sociais por medo de serem julgados, tratados de forma agressiva ou “cancelados”, prática da era digital que promove a exclusão de uma pessoa.

O objetivo do “cancelamento” é punir a pessoa por algo que ela tenha dito ou compartilhado em seus perfis, e que despertou reprovação ou repúdio em outros indivíduos.

Encomendado pelo movimento cívico global Avaaz e pela Fundação Tide Setubal, o estudo ouviu 1.008 jovens, entre 18 e 21 de setembro, e retrata como eles percebem a política nacional.

A pesquisa indica que 20% desses jovens desconhecem as instituições brasileiras, como o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal (STF); 80% consideram que o debate político é agressivo e intolerante. No entanto, 82% dos entrevistados entre 16 e 18 anos estão interessados em tirar o título de eleitor para votar nas próximas eleições, mesmo antes de atingir a idade obrigatória.

“O estudo mostra, principalmente, que os jovens têm interesse genuíno por política. Eles têm fome de participação política, mas estamos servindo para eles um prato de intolerância e discussões desrespeitosas. Isso está fazendo com que eles tenham medo de aprender política”, opina Nana Queiroz, responsável sênior de campanhas na Avaaz.

Desigualdade educacional

Márcio Black, coordenador do programa de Democracia e Cidadania Ativa da Fundação Tide Setubal, considera que os dados refletem a desigualdade educacional no Brasil.

“Hoje, temos um tipo de escola que não forma para a cidadania. Os jovens acabam não conhecendo de fato o funcionamento das instituições e como se organiza o pacto federativo no Brasil”, discorre Black. “Os espaços históricos de formação política, partidos, sindicatos e os grêmios estudantis perderam esse papel. Não estamos sendo capazes de articular novos espaços”, avalia.

Apesar disso, Black acredita que as escolas e os demais lugares em que os jovens se sociabilizam continuam sendo espaços de formação política. “Uma parte passa pela Igreja, outra pelos espaços de promoção de cultura, esporte etc.”

Polarização

No mundo da política, a polarização está relacionada à disputa entre grupos com divergências ideológicas.

Segundo o estudo do Ipec, 69% dos jovens consideram que a direita é intolerante e agressiva com quem pensa diferente e 66% têm a mesma percepção sobre a esquerda. Além disso, 58% dos entrevistados concordam que a divisão entre direita e esquerda na política não faz sentido.

Para Maria Gorete Marques de Jesus, socióloga, especialista em Direitos Humanos e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP), esses números refletem o que a sociedade brasileira tem vivido nos últimos anos.

“Pelo menos desde 2013 têm sido frequentes os ataques a quem se posiciona de forma diferente. A ampliação do acesso à internet e às redes sociais potencializou isso, ampliando a dimensão e efeitos desses ataques”, comenta Maria Gorete, reforçando que o “cancelamento” gera enorme preocupação para essa geração porque é uma forma de ser retirado do meio e da convivência dos pares.

A socióloga lembra que as últimas eleições foram marcadas pelo acirramento dessa polarização, o que rendeu sérias consequências. “Uma delas, e talvez uma das mais graves, seja a produção de desinformação, por meio das fake news, que distorce informações essenciais para uma vida democrática saudável.”

“O que de fato defende a direita? O que de fato defende a esquerda? O que é ser de direita ou de esquerda?”, questiona a pesquisadora. “Esse tipo de discussão reduz enormemente as pautas defendidas por esses campos políticos ideológicos e não contribuem para o debate mais aprofundado sobre quais políticas são necessárias para construirmos a sociedade que desejamos”, avalia.

Maria Gorete alerta que a desinformação “é o cenário perfeito para um desastre do sistema democrático. A qualidade da informação e sua idoneidade é um direito humano importante para que consigamos construir uma vida política em que é possível viver com a diferença e pluralidade. Contudo, parece que a juventude está atenta a isso, e a pesquisa mostra essa preocupação”.

Nana Queiroz frisa que a política não está respondendo aos anseios e às preocupações dos jovens. “Parece que os políticos estão falando um idioma e os jovens, outro”, comenta. “Se insistirmos nessa polarização sem sentido, vamos acabar perdendo nossos jovens para a apatia ou para o radicalismo. Qualquer sociedade em que os jovens não participam da política é uma sociedade sem perspectiva de futuro.”

Para Black, o grande desafio é criar um contexto de espaço cívico que seja mais amigável para acomodar os jovens que têm interesse pela política e depois olhar para as escolas como espaços de forma cidadã para despertar o interesse deles pela cidadania. “Temos que ter um espaço cívico que seja capaz de gerar uma boa experiência de ação política nesses jovens.

Política: campo de valorização da pessoa, não de polarizações

De acordo com o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI), a participação do cidadão na vida comunitária é “uma das pilastras de todos os ordenamentos democráticos, além de ser uma das maiores garantias de permanência da democracia […] toda democracia deve ser participativa [cf. encíclica Centesimus annus, 46]. Isso implica que os vários sujeitos da comunidade civil, em todos os seus níveis, sejam informados, ouvidos e envolvidos no exercício das funções que ela desempenha” (CDSI, 190).

O Compêndio faz menção à encíclica Centesimus annus, de São João Paulo II, para lembrar que a “‘Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de substituí -los pacificamente, quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpem o poder do Estado a favor dos seus interesses particulares ou dos objetivos ideológicos. Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção, quer dos indivíduos por meio da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da subjetividade da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e corresponsabilidade’ [cf. CA, 46]” (CDSI, 406).

Também está ressaltado no Compêndio que a informação é um dos principais instrumentos da participação democrática. “Não é pensável participação alguma sem o conhecimento dos problemas da comunidade política, dos dados de fato e das várias propostas de solução dos problemas. É necessário assegurar um real pluralismo neste delicado âmbito da vida social, garantindo uma multiplicidade de formas e de instrumentos no campo da informação e da comunicação” (CDSI, 414).

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