Os desafios para reciclar e reutilizar em meio à cultura do descarte

Luciney Martins/O SÃO PAULO

O uso racional dos recursos naturais tem sido uma preocupação constante dos que se dedicam ao meio ambiente e também da Igreja. Já em 1979, na encíclica Redemptor hominis, São João Paulo II alertava que o homem “parece muitas vezes não se dar conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles somente que servem para os fins de um uso ou consumo imediatos” (RH, 15). 

Mais recentemente, na encíclica Laudato si’, publicada em 2015, o Papa Francisco enfatizou os impactos nocivos dos resíduos jogados como lixo no ambiente, sendo este comportamento uma expressão daquilo que o Pontífice chama de cultura do descarte. Ele aponta que o sistema industrial, no final do ciclo de produção e consumo, “não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar resíduos e dejetos” (LS, 22) e que há uma “lógica do ‘usa e joga fora’ que produz tantos resíduos, só pelo desejo desordenado de consumir mais do que realmente se tem necessidade”. (123). 

O Pontífice também destaca o papel da educação para a responsabilidade ambiental e o incentivo a comportamentos que ajudem a “evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer” (LS, 211). 

O jornal O SÃO PAULO publica a 1º edição do caderno “Ecologia”, que, inicialmente, trará uma série de reportagens sobre a problemática do lixo. Os desafios e as oportunidades para a prática da reciclagem são o primeiro tema abordado. 

UM PAÍS QUE RECICLA POUCOS RESÍDUOS 

A cada ano, cerca de 82,5 milhões de toneladas de resíduos são produzidas no Brasil, tendo como destino principal o lixo, já que apenas 2,1% deste montante é reciclado, conforme dados do Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão de Resíduos Sólidos (Sinir), do Ministério do Meio Ambiente. 

Em relação ao lixo seco, o percentual reciclado é de 3%, de acordo com o Panorama dos Resíduos Sólidos 2021, elaborado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). O documento informa, ainda, que 26% das cidades brasileiras não têm qualquer iniciativa de coleta seletiva. 

“Em pesquisas, 75% das pessoas têm declarado que não separam recicláveis, o que já indica uma falta de consciência sobre o tema. O poder público e a iniciativa privada têm a responsabilidade de criar fórmulas e modelos para incentivá-las à prática de reciclagem”, avalia Rodrigo Oliveira, CEO da Green Mining, empresa que atua no ramo de logística reversa de resíduos. 

Oliveira ressalta que as estratégias devem ir além do apelo à consciência ambiental, e permitir um efetivo retorno financeiro a quem recicla: “Sempre vejo o descarte como a imagem de alguém jogando uma moeda de R$ 1 no lixo. Não faz sentido, pois é um recurso que já foi extraído da natureza, transformado e que ainda tem valor. Tanto o produto quanto a embalagem pertencem a quem comprou, e essa pessoa tem o ônus do que fazer com eles, mas também pode ter o bônus”. 

Para Rubens Lyra, engenheiro ambiental e coordenador do Serviço Franciscano de Apoio à Reciclagem (Recifran), a grande quantidade de itens jogados no lixo, especialmente no caso dos eletrônicos, tem como uma das razões a obsolescência programada, ou seja, o apelo dos fabricantes para a aquisição de versões mais modernas de um produto, ainda que aquele que o consumidor já tenha adquirido esteja em boas condições. 

“Um produto que a pessoa já possui há três anos, quando surge algo mais novo na indústria, esse consumidor vai, compra e descarta o antigo. Também há um pensamento de que talvez não valha a pena pagar para fazer o conserto de algo com defeito e que demandaria uma simples manutenção. A maioria das pessoas simplesmente descarta esse material e não busca saber se há um local específico para o correto descarte”, comenta Lyra. 

COMO MUDAR ESTE PANORAMA? 

A melhor destinação dos resíduos no Brasil tem sido alvo de constantes reflexões e marcos legais. Em 2010, foi instituída a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) – lei 12.305/2010 – e mais recentemente, em abril deste ano, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares) – decreto 11.043/2022 – que traz entre suas metas que o percentual de reciclagem em todo o País chegue próximo a 14% em 2024 e a 48% em 2040. 

Oliveira acredita que alcançar tais metas não é impossível, desde que as empresas efetivamente realizem a logística reversa, devendo haver fiscalização e sanções para as que não cumprirem a lei. Ele também cita como positivo o decreto 11.044/2022, que preconiza a comprovação de que uma empresa fez a restituição, em massa, de produtos e embalagens ao ciclo produtivo, bem como se tem adotado medidas para a não geração e redução de resíduos sólidos. 

“O decreto é muito bom, pois permitirá olhar cada vez mais de perto os recicláveis e só vai valer o que realmente chega nas usinas de reciclagem. Por que, até então, se considerava logística reversa quando o gerador do resíduo vendia para outrem, e este para outro, acumulando um monte de nota fiscal. Isso agora não vale mais”, explica Oliveira. 

Para Lyra, cobrar responsabilidades de todos os envolvidos na cadeia de produção é o melhor caminho. “Não se deve focar a responsabilidade apenas no consumidor final. Na geração de resíduos plásticos, por exemplo, 50% é no pós-uso pelo consumidor doméstico, e a outra metade é anterior ao consumo. Há muita embalagem que seria desnecessária. Por exemplo: ter uma fruta descascada embalada é algo tão necessário? Mas se tira a casca para facilitar o consumo, por questão de praticidade”, lamenta. 

Oliveira lembra que a PNRS, em seu artigo 9º, apresenta uma hierarquia para a gestão de resíduos. “O primeiro item é não gerar. Depois, se fala em reutilizar. Para a reutilização, o trabalho com as tecnologias que já existem de rastreabilidade, de retorno, tornará o processo mais vantajoso, para não se fazer embalagem para ser jogada fora. Pensa-se em embalagens contínuas, que podem ser de reúso, como as garrafas de cerveja, por exemplo, que são retornáveis e podem ser lavadas cerca de 24 vezes. Portanto, na hierarquia, a não geração e o reúso vêm antes da reciclagem. Hoje, porém, a maior parte dos gastos estão em coleta e destinação, ou seja, coleta de lixo e aterro sanitário, e não se gasta quase nada para não gerar o resíduo ou fazer o retornável”, analisa. 

Uma outra esperança para o aumento da cultura da reciclagem no Brasil é a Lei de Incentivos à Reciclagem (14.260/2021), que, entre outras medidas, permite que pessoas físicas e jurídicas, por meio de deduções no Imposto de Renda, apoiem a reciclagem, colaborando com a compra de veículos e equipamentos para tal fim, com a construção de postos de entrega voluntária de resíduos e centrais de separação de recicláveis, bem como no suporte à capacitação profissional de cooperativas de catadores e o desenvolvimento de tecnologias voltadas à coleta de materiais reutilizáveis e recicláveis. 

CONFIRA A PRIMEIRA EDIÇÃO DO CADERNO DE ECOLOGIA NA ÍNTEGRA

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