Pela lei, por governos e por extremistas, perseguição aos cristãos continua implacável

Relatório “Perseguidos, mas não esquecidos: 2020-22”, publicado pela ACN, mostra que, em 75% dos 24 países pesquisados, a opressão aos que professam a fé no Cristo se intensificou nos últimos dois anos

Freira ajoelha-se pedindo que a polícia não atire em jovens que se refugiaram na Catedral de São Columbano, em março de 2021, em Mianmar
Fotos: ACN

Ter a casa invadida, sofrer constantes intimidações e ameaças de morte e ver seus locais de culto vandalizados são algumas das realidades enfrentadas pelos cristãos em diferentes partes do mundo, conforme descreve o relatório “Perseguidos, mas não esquecidos: 2020-22”, publicado em novembro pela fundação Pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (ACN).

Em 75% dos 24 países analisados na África, Ásia, Oriente Médio, além da Rússia, houve piora na opressão e perseguição aos cristãos. 

Conforme explicou ao O SÃO PAULO Valter Callegari, diretor-executivo da ACN Brasil, para distinguir situações de opressão ou perseguição por motivação religiosa de outras em que os cristãos sofram com violências independentemente da fé que professem, “a ACN utiliza como critério o preconceito religioso referente a cada situação e avalia cada caso de acordo com as quatro dimensões da liberdade religiosa incluídas no artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU: ter ou não ter uma religião; poder mudar de religião; viver de acordo com ela em público e em privado; viver de acordo com ela individual e coletivamente. Para ser considerado uma violação do direito à liberdade religiosa ou de crença, cada incidente deve ter um preconceito religioso”.

Apresentamos, a seguir, uma síntese sobre a situação em cada região mapeada no relatório.

Na Ásia, o autoritarismo estatal é o que mais preocupa

No continente asiático, o nacionalismo religioso desencadeou uma crescente violência contra os cristãos, conforme mostra o relatório da ACN, ao analisar a situação no Afeganistão, China, Coreia do Norte, Paquistão, Índia, Maldivas, Vietnã, Mianmar e Sri Lanka. 

Na Coreia do Norte, a perseguição se materializa em assassinatos, abortos forçados, infanticídio e repressão à prática da fé. “Quando nossa Bíblia foi encontrada, ela foi imediatamente destruída. Porque somos cristãos, fomos exilados para uma aldeia remota sem chance de sair. O trabalho aqui é penoso. A comida é limitada”, escreveu à ACN uma das vítimas presa e enviada a trabalhos forçados por ser cristã.

A repressão também é recorrente na China, com prisões, fechamento dos locais de culto e legislações rígidas contra os cristãos que não aderem aos organismos criados pelo regime comunista para controlar as atividades das igrejas. Existe até um banco de dados de pessoas religiosas e “certidões de clérigos” para que se faça tal controle. 

Valter Callegari destacou que os governos chinês e norte-coreano buscam controlar cada passo dos fiéis: “Isso significa que um cidadão não pode sequer celebrar o Natal de forma pública. A impressão de Bíblias também só acontece com a permissão do governo. Em novembro de 2021, um casal cristão foi condenado a sete anos de prisão, além de uma multa equivalente a R$ 172 mil simplesmente por imprimir materiais religiosos. Na Coreia do Norte, possuir uma Bíblia implica risco de vida, fazer uma oração coletiva é praticamente impossível e, nas escolas, ensinam que os missionários cristãos são espiões que buscam invadir o país”. 

No Paquistão, houve o aumento dos relatos de assédio, violência e perseguição, sob a alegação de que os cristãos blasfemam a fé islâmica. “A legislação [leis da blasfêmia] inclui as seções 295B e 295C, que, respectivamente, impõem prisão perpétua por profanação de textos corânicos e sentença de morte por desrespeitar o Profeta Islâmico Maomé”, consta no relatório.

No Afeganistão, desde a volta do Talibã ao poder, em 2021, os cristãos buscam por esconderijos, por medo de prisões, torturas e execuções. Segundo a ACN, há relatos de ataques às casas de recém-convertidos ao Cristianismo. Além disso, as mulheres cristãs temem ser espancadas, vendidas ou terem de se casar contra a própria vontade com um muçulmano. 

Já na Índia, no período analisado, houve o recorde de incidentes de violência anticristã, com 710 registros. A alta nas perseguições pode ser explicada pelo crescimento da Hindutva, uma vertente do nacionalismo hindu que prega que a Índia não deve tolerar outras religiões e culturas. Foi o que ocorreu, por exemplo, em uma escola católica no estado de Madhya Pradesh, em dezembro de 2021: “O diretor da escola, Irmão Anthony Pynumkal, disse que à tarde uma multidão armada com barras de ferro e pedras chegou. Eles cantaram enquanto vandalizavam a propriedade da escola. O caso foi precedido de acusações postadas por ‘Aayudh’, no YouTube, que diziam que a escola estava convertendo estudantes hindus”, consta no relatório.

No Vietnã, o que mais chamou a atenção foi o fato de a COVID-19 ser usada pelas autoridades como pretexto para restringir a atividade religiosa, com algumas comunidades sendo responsabilizadas pela disseminação do vírus. Além disso, a Lei da Crença e de Religião, em vigor desde 2018, tem restringido a liberdade religiosa no país, com a interrupção de missas e cultos. 

Em Mianmar, entre fevereiro de 2021 e junho de 2022, os militares destruíram ao menos 132 locais de oração dos cristãos e dos budistas, sob a alegação de que neles havia proteção aos que resistiam ao governo instituído. Já nas Maldivas, demonstrações públicas de símbolos cristãos e importação de bíblias, por exemplo, podem resultar em prisão. No Sri Lanka, por sua vez, há o forte nacionalismo budista cingalês, inclusive com monges intimidando cristãos a interromperem missas e cultos. 

Vizinha ao continente asiático, na Rússia também há relatos sobre dificuldades impostas pelo governo para a prática da religião. Pregações, momentos de oração e divulgação de informações sobre a religião, por exemplo, só podem ocorrer em locais determinados.

No Oriente Médio, as migrações forçadas têm feito as comunidades desaparecerem

“Uma crise migratória ameaça a sobrevivência de algumas das comunidades cristãs mais antigas do mundo, localizadas no Iraque, na Síria e na Palestina”, diz a ACN em seu relatório, no qual também analisa a perseguição aos cristãos na Turquia, Irã, Catar, Egito, Arábia Saudita e Israel.

A situação mais preocupante é da Síria, onde a opressão islamita e ataques a aldeias e cidades de maioria cristã têm levado à emigração dos cristãos, que despencaram de 10% para 2% do total da população. 

Ismael Martínez Sánchez/ACN

“Onze anos após a eclosão da guerra que deixou centenas de milhares de mortos, milhões de deslocados e cidades destruídas, a crise econômica e social é mais profunda do que nunca. Metade da população síria, que era de 23 milhões no início do conflito, fugiu de suas casas. Cerca de 5,5 milhões deles estão vivendo como refugiados, enquanto 6,7 milhões estão deslocados internamente”, ressaltou Valter Callegari. “No momento, a população síria precisa de segurança e alimentação, além do apoio espiritual para reconstruírem suas vidas. Na ACN, estamos dedicando a campanha de Natal para ajudar famílias cristãs na Síria que já não têm mais alimento”, prosseguiu. 

No Iraque, também tem sido verificada a redução no número de cristãos: dos 300 mil, em 2014, para os atuais 150 mil. No entanto, as comunidades cristãs estão aos poucos se reconstruindo, ainda que ocorram perseguições por parte de jihadistas, e haja um cenário cultural hostil aos cristãos. “Tratados como cidadãos de segunda classe, discriminados na escola ou no trabalho, com salário baixo ou desempregados, muitos desejam buscar uma vida fora do país”, consta no relatório da ACN. 

Em Israel e em territórios da Palestina, os cristãos sofrem com as ações do Hamas, e há aparente tentativa de forçar a saída da comunidade cristã de Jerusalém. Em fevereiro de 2021, o Mosteiro Ortodoxo Romeno em Jerusalém sofreu quatro ataques no espaço de um mês, e uma tentativa de incêndio destruiu a entrada da igreja. 

No Egito, os cristãos têm encontrado grande hostilidade por parte dos radicais islâmicos, mesmo com o governo do país ampliando a permissão para a construção de igrejas e regularizando mais locais de oração. Permanecem, porém, os casos de sequestro e conversão forçada das cristãs cooptas para abusos sexuais e casamentos.

A extrema opressão aos cristãos também é recorrente no Irã. Um exemplo foi o que ocorreu em janeiro de 2020 com Fatemeh (Mary) Mohammadi, uma cristã convertida: “Durante protestos em Teerã, ela foi levada pelo Centro de Detenção Vozara, e espancada tão intensamente por guardas homens e mulheres que ela ficou com hematomas por três semanas. Em 18 de janeiro de 2021, ela foi presa novamente pela polícia da moralidade, que disse que suas calças estavam muito apertadas, seu lenço na cabeça não estava bem colocado e que seu casaco estava desabotoado”, informa a ACN em seu relatório. 

Já na Turquia, chama a atenção a política do governo local de “reislamizar” locais cristãos históricos, como a Hagia Sophia, de Istambul, originalmente uma basílica ortodoxa grega, mas que em 2020 foi transformada em uma mesquita. Há relatos de discriminação aos católicos, profanação de templos, e a Igreja Católica não é reconhecida como uma entidade jurídica. 

Na Arábia Saudita, embora haja compromissos formais com a garantia da liberdade religiosa, os cristãos têm visto o banimento de seus locais de adoração e encontram resistências para demonstrar publicamente a fé. Conforme a Lei Geral de Governança, em vigor desde 1992, “locais não islâmicos de adoração são proibidos, assim como a expressão pública de credos não muçulmanos”, recorda o relatório da ACN. 

No Catar, aqueles que se convertem ao Cristianismo têm enfrentado pressão de familiares e da comunidade muçulmana. “A lei ‘criminaliza o proselitismo em nome de uma organização, sociedade ou fundação de qualquer religião que não seja o Islã, e prevê punição de até dez anos de prisão’. Também proíbe as congregações de anunciar serviços religiosos – e no Complexo Religioso Mesaymeer, cruzes, estátuas e quaisquer outros símbolos cristãos que sejam ‘visíveis ao público’ são proibidos”, recorda a ACN.

Na África, cristãos são os alvos preferenciais dos terroristas

Nos seis países mapeados pelo relatório na África – Mali, Sudão, Eritreia, Nigéria, Etiópia e Moçambique –, os indicadores de perseguição aos cristãos pioraram nos últimos dois anos, especialmente por causa da violência terrorista de militantes não estatais. 

“Os governos locais não conseguem oferecer segurança à população. Grupos como o Boko Haram, na Nigéria, e outras ramificações do grupo Estado Islâmico tentam estabelecer califados na região do Sahel. Muitas vezes, existem outros interesses por trás dessa perseguição, como o interesse pelos recursos naturais dos países, fazendo com que a perseguição religiosa seja usada como uma ‘cortina de fumaça’. No entanto, mesmo quando a perseguição religiosa não é o fator principal, um cristão continua sendo assassinado simplesmente por ser cristão”, explicou Callegari.

Um dos locais que mais preocupa é a Nigéria: entre janeiro de 2021 e junho de 2022, cerca de 7,6 mil cristãos foram assassinados; e 5,2 mil, sequestrados. De acordo com o relatório, a Nigéria “está à beira de se tornar um estado falido, com sequestros, prisões de padres e ataques mortais a igrejas se tornando cada vez mais frequentes”. 

Em 5 de junho deste ano, um ataque à Igreja de São Francisco Xavier, no estado de Ondo, durante a missa do Domingo de Pentecostes, resultou na morte de 40 pessoas. Também têm sido recorrentes os ataques do Boko Haram a assentamentos civis para realizar sequestros, na maioria das vezes de meninas e jovens mulheres, que posteriormente são forçadas a se casar com estes extremistas e se converter ao Islã. 

O sequestro de meninas também vem sendo registrado em Moçambique. Além disso, no período analisado, os ataques islamistas levaram ao deslocamento de cerca de 800 mil pessoas e à morte de 4 mil cristãos, além do ataque a aldeias cristãs e destruição de igrejas. 

Na região de Tigré, que envolve os territórios da Eritreia e da Etiópia, prédios de igrejas cristãs foram vandalizados. “Tropas da Eritreia são acusadas de uma campanha, etnicamente motivada, de ‘limpeza cultural’, participando em massacres de cristãos na Etiópia, como o de Aksum; assim como a destruição de antigos mosteiros e prédios da Igreja”, consta no relatório. 

A perseguição a sacerdotes também é recorrente na Etiópia. Um dos relatos dá conta de que “alguns dos padres ficam de pé segurando as suas cruzes, então eles [soldados] cortam as suas mãos. E quando pedem aos padres para removerem seus chapéus e eles dizem que não, são baleados”. Em julho de 2022, bispos na Etiópia alertaram que no Tigré igrejas estão sendo fechadas, com padres e freiras forçados a fugir.  

No Mali, o que mais preocupa é que os radicais extremistas tomaram áreas centrais do país, tentando impor o Islã nas comunidades cristãs; e no Sudão, apesar da apostasia – suposto abandono da fé anteriormente professada – deixar de ser punida com a pena de morte desde 2020, os que se convertem ao Cristianismo são perseguidos pelos extremistas islâmicos.

‘A fé provada no fogo mostra seu ouro’

Valter Callegari destacou à reportagem que “os cristãos perseguidos continuam sendo testados na fé enquanto nós, que temos liberdade religiosa, somos testados no amor. Assim como no passado, o Cristianismo continua a florescer onde ele mais sofre”. 

Ainda de acordo com o diretor-executivo da ACN-Brasil, “o ensinamento que esses cristãos trazem é que a fé, quando provada no fogo, mostra o seu ouro; ouro que muitas vezes nós carregamos aqui sem dar muito valor. Nesses países, vemos pessoas que arriscam suas vidas para participar de uma missa dominical, enquanto aqui, muitos deixam que uma simples chuva os afaste da celebração. Esses nossos irmãos nos ensinam o que é ter fé, nós temos que retribuir sendo a voz desses cristãos perseguidos e os ajudando com nossos recursos”, concluiu.

Anualmente, a ACN apoia os cristãos em todo o mundo que são perseguidos, oprimidos ou pastoralmente necessitados. Saiba como colaborar: https://www.acn.org.br/doacao.

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