Psicóloga Suzana Carneiro: ‘A realização pessoal depende da nossa inserção fecunda na sociedade’

No livro “Formação humana e violência – À luz da fenomenologia de Edith Stein” (Appris Editora), ela profunda a compreensão a respeito do ser humano e de seu processo formativo, tomando como referência a fenomenologia de Edith Stein e colocando-a em diálogo com a experiência de vida dos moradores do bairro do Uruguai, em Salvador (BA)

Em 2007, a psicóloga Suzana Filizola Brasiliense Carneiro esteve pela primeira vez no bairro do Uruguai, região de Alagados, em Salvador (BA), e percebeu como os moradores sofriam com violências física, preconceitos e negligências do Estado. Chamaram-lhe a atenção, porém, as maneiras pelas quais encontraram respostas pessoais e comunitárias diante dessa realidade. Em sua pesquisa de doutorado em Psicologia Clínica, Suzana percebeu similaridades dessas vivências com as de Edith Stein (1891-1942), que, de origem judaica, foi perseguida pelos nazistas e morta em um campo de concentração quando já havia se convertido ao catolicismo e, como carmelita, adotara o nome de Teresa Benedita da Cruz. Ela foi canonizada por São João Paulo II em 1998.

Fruto de sua tese doutoral, no livro “Formação humana e violência – À luz da fenomenologia de Edith Stein” (Appris Editora), Suzana aprofunda a compreensão a respeito do ser humano e de seu processo formativo, tomando como referência a fenomenologia de Edith Stein e colocando-a em diálogo com a experiência de vida dos moradores do bairro do Uruguai, conforme detalha nesta entrevista a profissional, que, além de doutora em Psicologia Clínica pela USP, é mestra em Psicologia da Educação pela PUC-SP e especialista em Teologia da Evangelização pela Universidade Lateranense de Roma. Leia a íntegra a seguir:

O SÃO PAULO – Como a senhora chegou a essa aproximação entre as violências que Edith Stein sofreu dos nazistas, especialmente por ser intelectual, mulher e judia, e as experiências de violência sofridas pelos moradores do bairro do Uruguai?

Suzana Filizola Brasiliense Carneiro – O que me levou a essa aproximação não foi a violência em si, mas as possibilidades de enfrentamento que ambos testemunham. Tanto Edith Stein quanto os moradores do Uruguai sofreram com as adversidades do seu contexto de vida, mas conseguiram elaborar respostas pessoais que inauguraram possibilidades existenciais mais autênticas tanto do ponto de vista pessoal quanto do comunitário. No caso de Edith Stein, esse enfrentamento se deu a partir de sua investigação no campo filosófico, encarando temas como a empatia, a qualidade das relações sociais, a essência do Estado e a educação feminina. No caso dos moradores do Uruguai, esse enfrentamento ocorre a partir do sentimento de pertença a um território construído com as próprias mãos, e ao mesmo tempo, valorizado e sustentado pela dimensão de fé. O Uruguai recebeu a visita de São João Paulo II em 1980, e de Santa Teresa de Calcutá, além de ter sido o local das atividades pastorais de Santa Dulce dos Pobres. Pelos depoimentos dos moradores, fica clara a relação entre a experiência da própria dignidade e o fato de terem sido enxergados e visitados por esses três santos da Igreja Católica.

À luz da Fenomenologia, como essas experiências de violência interferiram historicamente no desenvolvimento humano desses moradores?

Quando falamos de violência, nos referimos a qualquer fenômeno que viole a dignidade e a integralidade das pessoas. As experiências de violência narradas pelos moradores estão associadas à violência urbana de um território periférico de uma grande cidade. Entre elas podemos citar a omissão do Estado na regularização fundiária e na oferta de políticas públicas. Diante desse vazio, o bairro passou a ser ocupado na informalidade, à custa de muito sacrifício e incertezas. O Uruguai teve início nos anos 1930, quando a Península de Itapagipe se tornou polo industrial de Salvador, atraindo pessoas do interior da Bahia em busca de trabalho. Por falta de recursos, os migrantes construíram suas casas sobre o mar, nos moldes de palafitas. Nessas condições precárias, marcadas por improviso e muita esperança, adultos e crianças acabaram morrendo vítimas de disputas e de acidentes (tragados pela maré). Além disso, o bairro foi aterrado inicialmente pelos próprios moradores com o lixo e restos de material de construção provenientes da área nobre da cidade, o que contribuiu para a discriminação dos moradores, que passavam a enfrentar dificuldades, por exemplo, para conseguir emprego quando revelavam seu endereço residencial. Do ponto de vista do desenvolvimento humano, essas violências sofridas dificultam o desenvolvimento de uma vida interior, pois o medo e a necessidade de vigilância pela sobrevivência são acompanhados por um fechamento tanto para si como para o outro, visto como ameaça. Nesse sentido, experiências como essa promovem um modo de vida que tende a se adaptar ao que está posto, muitas vezes sem uma correspondência aos anseios mais profundos da pessoa. Não se trata de uma regra, mas de uma tendência, pois como nos ensina Edith Stein, seria reducionista afirmar que o ser humano é apenas fruto de seu contexto, numa relação de causa e efeito. Stein insiste em afirmar a importância da singularidade e da liberdade como elementos fundamentais na relação com as determinações que atravessam a nossa existência.

A tese desenvolvida pela senhora contemplou alguma ação/intervenção no campo da Psicologia Clínica com as pessoas desse bairro?

A pesquisa teve um sentido exploratório com o objetivo de compreender quais eram as vivências fundamentais dos moradores e como elas repercutiam em seu processo formativo, a fim de embasar futuras ações interventivas. Por outro lado, creio que a convivência e a escuta realizadas neste percurso tenham sido uma forma de intervenção clínica pela possibilidade de reflexão e elaboração que o relato oral de uma experiência proporciona. Edith Stein reconhece a importância da palavra e afirma que um dos objetivos do trabalho formativo é auxiliar a pessoa a expressar aquilo que ela quer dizer. Portanto, acredito que o relato oral tenha sido uma oportunidade para os participantes exercitarem a percepção de si e da própria história, explicitando sofrimentos, mas, também, sentidos e valores que os fortalecem no seu percurso formativo e comunitário. Como decorrência dessa constatação, percebi a importância de oferecer uma devolutiva da pesquisa para os moradores, explicitando a riqueza e os recursos de enfretamento da violência que pude testemunhar. Além disso, pude constatar que muitos jovens não conhecem a história do seu território e que seria oportuno promover um diálogo entre eles e os moradores antigos, de modo que essas raízes possam fortalecê-los no amadurecimento da própria identidade. Nesse sentido, a publicação do livro é uma forma de deixar registradas e de tornar visíveis essas histórias de vida que, ao meu ver, possuem um valor para além do âmbito privado por ilustrarem a força da pessoalidade, nos auxiliando a manter um olhar de esperança diante das adversidades e nos encorajando a sermos cada vez mais “nós mesmos”.   

Edith Stein

Edith Stein formou-se em Filosofia. De que maneira os estudos e escritos feitos por ela também contribuíram com a área da Psicologia?

A principal contribuição de Edith Stein para a Psicologia é a sua visão de pessoa, a compreensão de ser humano como uma unidade dinâmica constituída por vivências de natureza psicofísica (involuntárias) e espiritual (consciência, reflexão e liberdade). Devido ao seu interesse pela pessoa humana, a Psicologia sempre foi uma disciplina cara a Edith Stein, desde os seus primeiros estudos na Faculdade de Breslávia. Esse contato a fez perceber que faltava a essa disciplina os fundamentos necessários para uma compreensão clara do ser humano; pois a Psicologia da época, sob influência da mentalidade positivista, restringia-se à descrição das sensações psicofísicas, sem atingir a experiência humana propriamente dita. Além disso, Edith Stein percebeu uma confusão conceitual entre psique e consciência. Foi no campo da Filosofia, a partir da fenomenologia de Edmund Husserl, que Stein encontrou o caminho para essa fundamentação antropológica que ela oferece à Psicologia e às ciências humanas em geral. Essa contribuição é extremamente válida ainda hoje, devido à crescente tendência de uma Psicologia focada exclusivamente na eliminação de sintomas e do mal-estar (dimensão psicofísica), que não ajuda a pessoa a acessar os sentidos mais profundos da sua existência. 

No entender de Edith Stein, quais são os principais pilares da formação humana?

Para Edith Stein, a formação humana se refere a um processo dinâmico de realização de “si mesmo”, que acontece na atualidade da vida como resultado da inter-relação entre as disposições pessoais inatas, o contexto e o livre-arbítrio. Esse processo de se tornar “si mesmo” explicita que a formação não se pauta por um modelo externo, mas por um princípio interior que orienta a formação da pessoa como ser humano e como indivíduo singular. Nesse sentido, a tarefa formativa deve ajudar a pessoa a se desenvolver tanto quanto indivíduo quanto como membro da grande comunidade humana. Esse ponto é fundamental e explicita que a nossa realização pessoal não se dá a partir de uma atitude individualista, mas depende da nossa inserção fecunda na sociedade, na vida comunitária.   

Na sinopse do livro, lê-se que “não basta o reconhecimento do apelo do núcleo pessoal para que a pessoa assuma a direção da própria vida, mas que ela necessita de uma quantidade mínima de força vital para realizar-se nessa direção”. Essa força vital também decorre da crença no transcendente? Nesse sentido, há algo a ser aprendido da espiritualidade de Santa Teresa Benedita da Cruz?

Sim. Essa força vital pode decorrer da experiência de fé, da abertura do ser humano ao transcendente. Mesmo antes da sua conversão ao catolicismo, os resultados da investigação fenomenológica das vivências levaram Stein a reconhecer uma fonte de força que está para além dos mecanismos da personalidade individual, indicando que a compreensão dessa experiência se daria no âmbito da fenomenologia da religião. Além disso, Edith Stein compreende o ser humano como um microcosmo, e ela reconhece que a dimensão espiritual do ser humano tem sua raiz no espírito divino, herdando dele a abertura e a capacidade de se doar como elementos fundamentais para a realização de si. Nesse sentido, ela reconhece que o caminho mais seguro no processo formativo é a doação de si ao espírito por excelência (Deus) e afirma que “quem se abandona a Deus é por ele conservado e reencontra a si nele” (p.150). A meu ver, esse é um grande aprendizado da espiritualidade de Santa Teresa Benedita da Cruz, ou seja, que a nossa realização passa pela providência divina e que o caminho mais seguro é o abandono a Deus.

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