Laudate Deum: uma exortação que conscientiza e propõe ações concretas

Vatican Media

Na recém-lançada exortação apostólica Laudate Deum (LD), o Papa Francisco enfatiza as causas humanas para a ocorrência das mudanças climáticas e alerta sobre os impactos que isso já tem trazido e que poderão permanecer para as gerações futuras. Apresentamos a seguir os pontos centrais do documento, cuja íntegra pode ser lida por meio do link.

POR QUE DECIDIU ESCREVÊ-LA?

Inicialmente, o Papa comenta que passados oito anos da publicação da encíclica Laudato si’, “dou-me conta de que não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se fragmentando e talvez aproximando de um ponto de ruptura. Independentemente desta possibilidade, não há dúvida de que o impacto da mudança climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. Sentiremos os seus efeitos em termos de saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e em outros âmbitos” (LD2). “Trata-se de um problema social global que está intimamente ligado à dignidade da vida humana” (LD 3).

NEGAÇÃO DOS SINAIS EVIDENTES DA CRISE CLIMÁTICA

Dos parágrafos 5 ao 10, o Papa fala dos sinais evidentes de uma crise climática global, tais como os períodos de calor anormal, secas, inundações, aumento do nível do mar, desgelo nos polos glaciais, enxugamento de lagos e populações eliminadas por maremotos. Ele lamenta, no entanto, que haja quem negue ou relativize estas evidências – “citam dados supostamente científicos, como o fato de que o planeta sempre teve e continuará a ter períodos de arrefecimento e aquecimento” (LD 6) – e refuta os argumentos daqueles que até reconhecem o problema, mas dizem que a substituição de combustíveis fósseis por formas mais limpas de energia irá impactar os postos de trabalho – “o que está a acontecer é que milhões de pessoas perdem o emprego devido às diversas consequências da mudança climática (…) a transição para formas renováveis de energia, quando bem gerida, assim como os esforços para se adaptar aos danos das alterações climáticas, são capazes de gerar inúmeros postos de trabalho em diferentes setores” (LD 10).

DESINTERESSE DAS POTÊNCIAS SOBRE O TEMA

Dos parágrafos 11 ao 14, o Papa se detém sobre as causas humanas para as mudanças climáticas: “É impossível esconder a coincidência destes fenômenos climáticos globais com o crescimento acelerado das emissões de gases com efeito estufa, sobretudo a partir de meados do século XX. A esmagadora maioria dos estudiosos do clima defende esta correlação, sendo mínima a percentagem daqueles que tentam negar esta evidência. Infelizmente, a crise climática não é propriamente uma questão que interesse às grandes potências econômicas, preocupadas em obter o maior lucro ao menor custo e no mais curto espaço de tempo possível” (LD 13).

IMPOSIÇÃO DO PARADIGMA TECNOCRÁTICO

Francisco recorda o conceito de paradigma tecnocrático, sobre o qual já havia falado na encíclica Laudato si’: “Trata-se de ‘um modo desordenado de conceber a vida e a ação do ser humano, que contradiz a realidade até o ponto de a arruiná-la’ [LS 101]. Consiste, substancialmente, em pensar ‘como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia’ [LS 105]. Como consequência lógica, ‘daqui se passa facilmente à ideia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia’ [LS 106]” (LD 20).

O Pontífice ressalta que este paradigma se alicerça em uma ideologia com a obsessão de “aumentar para além de toda a imaginação o poder do homem, para o qual a realidade não humana é um mero recurso ao seu serviço. Tudo o que existe deixa de ser uma dádiva que se deve apreciar, valorizar e cuidar, para se tornar um escravo, uma vítima de todo e qualquer capricho da mente humana e das suas capacidades” (LD 23).

REPENSAR AS FORÇAS DE PODER

O Pontífice também alerta para a necessidade de se repensar o grande poder nas mãos daqueles que detêm a vanguarda econômica e tecnológica, uma vez que tal poder “carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro de um lúcido domínio de si’ [LS 105]. Não é de estranhar que um poder tamanho em tais mãos seja capaz de destruir a vida, já que a matriz de pensamento própria do paradigma tecnocrático nos cega, não nos permitindo ver este gravíssimo problema da humanidade atual” (LD 24).

Contrariamente a este paradigma tecnocrático, o Papa lembra que “o mundo que nos rodeia não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites” (LD 25), mas que esta retórica de exploração é “disfarçada pelo marketing e pela informação falsa, mecanismos úteis nas mãos de quem tem maiores recursos para influenciar a opinião pública por meio deles” (LD 29). Também enfatiza que “a lógica do máximo lucro ao menor custo, disfarçada de racionalidade, progresso e promessas ilusórias, torna impossível qualquer preocupação sincera com a casa comum e qualquer cuidado pela promoção dos descartados da sociedade” (LD 31).

REDESENHAR O MULTILATERALISMO

Embora ressalte que para haver um progresso sólido e duradouro seja indispensável que se favoreça a ocorrência de acordo multilaterais entre os Estados (cf. LD 34), sem que se centralize o poder em uma só pessoa ou elite (cf. LD 35), o Papa aponta para a necessidade de se redesenhar o multilateralismo global, envolvendo demais atores, pois já se verifica que “‘muitos grupos e organizações da sociedade civil ajudam a compensar as debilidades da comunidade internacional, a sua falta de coordenação em situações complexas, a sua carência de atenção relativamente a direitos humanos fundamentais’ [Fratelli tutti, 175]… a sociedade civil e as suas organizações são capazes de criar dinâmicas eficazes que a ONU não consegue” (LD 37).

Trata-se, portanto, de considerar, também para as questões referentes às mudanças climáticas, que “a médio prazo, a globalização propicia intercâmbios culturais espontâneos, maior conhecimento mútuo e modalidades de integração dos povos, que levarão a um multilateralismo ‘a partir de baixo’ e não meramente decidido pelas elites do poder” (LD 38).

Esse redesenhar do multilateralismo, de acordo com o Papa, não pretenderá substituir a política e a diplomacia internacional (cf. LD 40-41), mas considerará que para as respostas aos novos desafios de um mundo multipolar e complexo (cf. LD 42), deve ser adotado “um novo procedimento para a tomada de decisões e a sua legitimação, porque o procedimento estabelecido há vários decênios não é suficiente nem parece ser eficaz. Neste contexto, são necessários espaços de diálogo, consulta, arbitragem, resolução dos conflitos, supervisão e, em resumo, uma espécie de maior ‘democratização’ na esfera global, para expressar e incluir as diversas situações” (LD 43).

POUCOS AVANÇOS NAS CONFERÊNCIAS SOBRE O CLIMA

Dos parágrafos 44 ao 52, o Papa recorda a realização dos eventos mundiais para tratar das questões climáticas, as anuais Conferências das Partes (COP). Ele lista os avanços que já ocorreram em algumas delas, como a COP 21, da qual resultou o Acordo de Paris, com vistas ao cumprimento de metas ambientais, mas que não estão sendo efetivamente postas em prática. Diante disso, o Pontífice retoma dois diagnósticos que já fizera na Laudato si’:

“Hoje podemos ainda afirmar que ‘os acordos tiveram um baixo nível de implementação, porque não se estabeleceram adequados mecanismos de controle, revisão periódica e sanção das violações. Os princípios enunciados continuam a requerer caminhos eficazes e ágeis de realização prática’ [LS 167]. E também que ‘as negociações internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global [LS 169]”. (LD 52).

PAUTAS PARA A COP 28

O Pontífice é direto acerca do que efetivamente precisa sair como resultado concreto da próxima COP, em novembro, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos:

“Se temos confiança na capacidade do ser humano transcender os seus pequenos interesses e pensar grande, não podemos renunciar ao sonho de que a COP28 leve a uma decidida aceleração da transição energética, com compromissos eficazes que possam ser monitorados de forma permanente. Esta Conferência pode ser um ponto de virada, comprovando que era sério e útil tudo o que se realizou desde 1992 [conferência sobre o clima no Rio de Janeiro]; caso contrário, será uma grande desilusão e colocará em risco quanto se pôde alcançar de bom até aqui” (LD 54).

Ele também aponta alguns aspectos que não devem ser esquecidos pelos participantes da COP 28:

  • “Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial’ [LS 111]… corremos o risco de ficar bloqueados na lógica do consertar, remendar, retocar a situação, enquanto no fundo avança um processo de deterioração, que continuamos a alimentar” (LD 57).
  • “De uma vez por todas, acabemos com a atitude irresponsável que apresenta a questão apenas como ambiental, ‘verde’, romântica, muitas vezes ridicularizada por interesses econômicos. Admitamos, finalmente, que se trata de um problema humano e social em sentido amplo e em diversos níveis”. (LD 58)
  • “Só podemos esperar em fórmulas vinculantes de transição energética que tenham três caraterísticas: eficientes, vinculantes e facilmente monitoráveis, a fim de se iniciar um novo processo que seja drástico, intenso e possa contar com o empenho de todos. Isso não aconteceu no caminho percorrido até agora, mas só com um tal processo se pode restaurar a credibilidade da política internacional, pois só dessa forma concreta será possível reduzir significativamente o dióxido de carbono e evitar a tempo males piores”. (LD 59).

“Oxalá que, a intervir na COP28, sejam estratégias capazes de pensar mais no bem comum e no futuro dos seus filhos, do que nos interesses contingentes de algum país ou empresa. Possam assim mostrar a nobreza da política, e não a sua vergonha”. (LD 60).

CUIDAR DA CRIAÇÃO

Francisco dedica alguns dos parágrafos finais da exortação apostólica para lembrar aos católicos que se engajar no cuidado da casa comum também é uma questão de fé. O Papa comenta que tudo foi criado por Deus e todas as coisas a Ele pertencem, e não ao homem. “Assim, ‘esta responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo’ [LS 68]”. (LD 62).

O próprio Cristo – recorda o Pontífice – “vivia em contato permanente com a natureza e prestava-lhe atenção com carinho e admiração. ‘Quando percorria os quatro cantos da sua terra, detinha-Se a contemplar a beleza semeada por seu Pai e convidava os discípulos a individuarem, nas coisas, uma mensagem divina’ [LS 97]” (LD 64).

UNIDOS E SEM TOMAR O LUGAR DE DEUS

Francisco comenta, ainda, que a vida humana não pode ser compreendida nem se sustentar sem as demais criaturas, razão pela qual deve ser refutada “a ideia de um ser humano autônomo, onipotente e ilimitado, e repensarmos a nós próprios para nos compreendermos de maneira mais humilde e mais rica”. (LD 67).

Destaca, também, que cada pessoa deve se perguntar sobre como tem agido para cuidar da Criação, mas lembra que “as soluções mais eficazes não virão só dos esforços individuais, mas sobretudo das grandes decisões da política nacional e internacional”. (LD 69); e que “não há mudanças duradouras sem mudanças culturais, sem uma maturação do modo de viver e das convicções da sociedade; não há mudanças culturais sem mudança nas pessoas” (LD 70), mas que já percebe os esforços para esse objetivo: “O simples fato de mudar os hábitos pessoais, familiares e comunitários alimenta a preocupação pelas responsabilidades não cumpridas pelos setores políticos e a indignação contra o desinteresse dos poderosos” (LD 71).

Por fim, ao retomar o título da exortação apostólica – Laudate Deum (Louvai a Deus), Francisco alerta: “Um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo” (LD 73).

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