Na contramão da mobilidade

Trânsito caótico é recorrente na capital paulista; superação do problema envolve ações como a maior capilaridade dos transportes públicos e sua integração com os modais não poluentes
Fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO

São Paulo é uma cidade que se desenvolveu respeitando mais os automóveis do que as pessoas. É só verificar a qualidade das calçadas: obstáculos, degraus, buracos e falta de sinalização. A priorização do transporte individual é uma vocação que acompanha a capital paulista desde os anos 1920, quando já se planejava o alargamento de vias e a construção de grandes avenidas para acolher o crescente número de carros que circulavam por suas ruas. Foi nessa época que surgiram as primeiras vias radiais e perimetrais, transformando uma cidade adensada e baseada na locomoção por transporte coletivo, o bonde, em uma cidade mais dispersa e dependente de automóveis.

Durante décadas, essa orientação pautou os planos de desenvolvimento e expansão urbana de São Paulo. Hoje, quase um século depois, não é muito diferente. A recente revisão do Plano Diretor Estratégico da cidade, aprovada no último mês de julho, está aí para comprovar. A diferença, agora, é que as diretrizes respondem aos interesses do setor imobiliário.

Dois dos principais pontos aprovados no novo Plano Diretor ampliaram a capacidade construtiva nas áreas próximas aos eixos de transporte e aumentaram a oferta de vagas de garagem. Isso significa que as construtoras poderão erguer prédios maiores nos corredores de ônibus, trem e metrô. Nos miolos de bairro, também. Como justificativa, alegam que o adensamento é importante para garantir o acesso de mais pessoas ao transporte público. De fato, isso faz muito sentido do ponto de vista da mobilidade e já estava previsto no plano de 2014. Mas, na prática, o que ocorreu – e será muito potencializado com a revisão atual – é justamente o contrário.

Primeiro, por uma questão óbvia: se a ideia é estimular o uso do transporte coletivo, não faz sentido ampliar o número de vagas para carros na garagem. O que será adensado, no caso, é o trânsito – e isso tem um impacto direto não só no tempo de deslocamento das pessoas, mas também nas emissões de carbono e de outros poluentes que afetam a saúde da população. Na realidade, o setor imobiliário está preocupado em ampliar as construções voltadas para as classes média e alta, que historicamente têm lhe dado os melhores resultados. Por isso, o aumento do gabarito nos miolos dos bairros.

Dados do Mapa da Desigualdade de São Paulo 2022, elaborado pela Rede Nossa São Paulo, mostram que o tempo médio de deslocamento por transporte público é três vezes maior nos distritos periféricos. Em vários bairros, as pessoas chegam a gastar duas horas e meia, todos os dias, em locomoção. Além disso, estudos mostram que, nos últimos anos, a oferta de novas moradias para a população de baixa renda está longe dos sistemas de transporte coletivo.

Na prática, o que se vê é o surgimento de prédios de alto padrão nesses locais – que, naturalmente, se tornam mais valorizados pela proximidade com o transporte público. Inacessíveis para a população de baixa renda, essas áreas concentram o maior interesse (e a principal demanda) do setor imobiliário. Enquanto isso, quem não pode pagar, vai para os distritos mais distantes. Ou seja, continuamos andando na contramão e reproduzindo a mesma lógica secular que nos trouxe até aqui. Ao atender aos interesses políticos e econômicos de um grupo restrito de agentes públicos e privados, o novo Plano Diretor de São Paulo comprova que temos um longo passado pela frente.

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