A Peste de Marselha e o ‘Bom Bispo’

Na sequência da série ‘A Igreja em tempos de epidemia’, recordamos esta peste que vitimou metade da cidade francesa e na qual se demonstrou a importância de se tomarem medidas rápidas para o enfrentamento de epidemias. Além disso, o exemplo do clero e do Bispo de Marselha, Dom Henri François, testemunha o amor e o cuidado da Igreja pelos doentes.

A Peste Negra, certamente, foi a pior de todas as pandemias. Não apenas em relação ao número de mortos, mas também por sua longa duração. Durante aproximadamente 400 anos ocorreram surtos da doença por toda a Europa. Hoje, trataremos de seu último surto na Europa Ocidental, que ocorreu nos anos de 1720 e de 1721 na cidade de Marselha, na França.

O último aparecimento da doença não foi menos mortal que os outros. Ao contrário, dessa vez, dizimou metade da população da cidade, com aproximadamente 40 mil vítimas. O que torna esse surto particularmente interesse para nós é a existência de um relato detalhado de um médico que contraiu a doença e conseguiu sobreviver. O Doutor Bertrand escreveu um livro em que descreve, de vários pontos de vista, as consequências da peste. Um relato tão próximo pode, certamente, ajudar-nos a compreender com mais proximidade os males terríveis trazidos pela doença.

Segundo Bertrand, os males da peste são piores que os da guerra e os da fome: “A peste é um implacável inimigo, cujas aproximações são as mais terríveis, na medida em que são invisíveis; ela normalmente penetra no coração da cidade antes que qualquer perigo seja percebido, e todos os esforços humanos são uma fraco recurso contra o seu poder e progresso. Onde ela reina, o culto divino é suspenso, os templos fecham, e o exercício público dos ofícios divinos são inevitavelmente proibidos”.

O médico continua descrevendo os males da peste: “Esse visitante fatal para o comércio na cidade e parece dissolver a sociedade. Ele interdita a assistência mútua entre os que sofrem, ele rompe completamente qualquer ligação de sangue e amizade, aniquila o amor conjugal, extingue, mesmo, a afeição paterna”.

A epidemia também aniquila qualquer diferença entre ricos e pobres: “A riqueza, que em outras circunstâncias, alivia todas as dificuldades e procura toda consolação que possa ser dada ao doente, na Peste é insuficiente para mitigar nossas desgraças. Os ricos e os pobres, inspirando medo igualmente a qualquer um que se aproxime, são deixados, da mesma forma, para definhar em uma mísera solidão”.

Depois de descrever com detalhes todos os males causados pela peste, Padre Bertrand afirma que são nada perante o que aconteceu em Marselha em 1720, que, segundo ele, foi o pior surto na cidade.

Origem do surto

A cidade de Marselha já havia sofrido, em sua história, pelo menos 19 surtos de peste. Devido ao seu rico comércio marítimo, Marselha tomava preocupações para evitar que a doença se instalasse na cidade. Os navios que chagavam do Levante, como era chamada a região oriental do Mar Mediterrâneo, eram obrigados a permanecer em quarentena. Todas as mercadorias eram, de certa forma, higienizadas – apesar de hoje sabermos que a forma de higienização usada à época não era eficiente. A tripulação dos navios também tinha de permanecer em quarentena antes de entrar na cidade. 

Os que chegavam nesses navios ficavam em uma enfermaria, e funcionários designados pela cidade a inspecionavam para garantir a observância de todas as regulações para a preservação da saúde pública na cidade. Apesar de todos esses cuidados, a doença apareceu nessa enfermaria e, de lá, espalhou-se para o resto da cidade.

Segundo Bertrand, o mal se espalhou pela demora e recusa de médicos e autoridades públicas de tomarem as medidas drásticas necessárias quando o primeiro navio com a peste chegou na cidade. Os tripulantes que não apresentavam sintomas eram liberados em pouco tempo de quarentena, e o primeiro médico a analisar os corpos dos falecidos negou por bastante tempo de que se tratava da peste.

Quando apareceu na cidade, a peste vitimou famílias inteiras em apenas uma rua. As autoridades levantavam muros para separar as casas infectadas e levavam as pessoas doentes para a enfermaria. Depois dessa primeira resposta, a enfermidade aparentemente tinha sido controlada. A população acreditou nisso e brincava acerca das medidas de contenção tomadas pelas autoridades, dizendo que tinham cometido um erro por não se tratar da peste. Entretanto, em pouco tempo, a doença voltou a manifestar-se em outras partes de Marselha.

Nesse segundo momento, as autoridades públicas não acreditaram que se tratava da peste, mas de outra doença, e não tomaram as medidas necessárias: os doentes morriam sem ajuda, eram enterrados na maneira usual e a comunicação entre eles e os saudáveis não foi proibida. Isso porque as autoridades confiaram apenas em um médico que negou se tratar da peste, em vez de convocar uma junta médica para averiguar os casos.

Com o crescimento do número de mortes, vários médicos escreveram um manifesto advertindo que a doença que atacava a cidade era, de fato, a peste.  As autoridades públicas, apesar das evidências claras, contraditaram os médicos, provavelmente, para não infundir medo na população. Esta, por sua vez, atacava os médicos, pois pensava que eles serviam a interesses escusos.

Entretanto, com o aumento do número de casos, a verdade se impôs e foi reconhecida, oficialmente, a peste em Marselha. Cidades vizinhas proibiram qualquer comunicação com a cidade empestada. Marselha vivia somente do comércio, e a calamidade da fome atingiu-a fortemente. Os padeiros não conseguiam trigo e faltou pão na cidade. Para solucionar o problema, foi estabelecido um mercado afastado da cidade, onde agricultores e comerciantes poderiam se encontrar, separados por barreiras para evitar o contágio.

Um hospital foi erigido para recepcionar os doentes. Apesar de poder receber centenas de doentes, em dois dias já estava lotado. Os mortos eram tantos que seus corpos chegaram a ser jogados em cisternas. Uma grande cova foi aberta ao lado da Catedral para enterrar os mortos indistintamente. Quando a mortalidade chegou a quatrocentos óbitos por dia, mesmo essa cova não foi suficiente. Muitos  coveiros morreram por causa da doença, e poucos assumiam a função. Esse fato, alinhado à falta de um lugar para deixar os doentes, trouxe o caos.

A fome devastou a cidade: todas as famílias tinham algum doente, e por isso os pobres não conseguiam trabalho e os ricos não encontravam nada para comprar. Padeiros e pescadores morreram quase todos, o que fez com que se formassem longas filas nas lojas que sobraram. Todos tornaram-se miseráveis, ricos e pobres.

Dentro das casas, os doentes eram trancados nos quartos e não tinham contato com ninguém. Colocava-se a comida na porta e o próprio doente tinha de rastejar para chegar a ela. Morria sozinho e seu corpo encontrava a vala comum. Pior era o cenário se toda a família caía doente: ninguém poderia cuidar de ninguém e todos morriam esquecidos.

Apenas a atuação da Igreja era capaz de trazer alento a uma situação dramática como essa.

A Igreja e o conforto aos doentes

O Doutor Bertrand salienta o papel central da Igreja, principalmente na pessoa do Bispo de Marselha, na consolação espiritual aos doentes. No começo da epidemia, os empestados não eram privados dos sacramentos da Confissão e da Unção dos Enfermos, meios pelos quais o doente encontra consolo e força para enfrentar a enfermidade. Entretanto, com o crescimento no número de mortos, os padres foram um dos grupos mais atingidos, e os que restaram não conseguiam atender toda a população.

Segundo Bertrand, “os padres cumpriram estritamente as obrigações de pastores do Senhor cheios de fé, sacrificando-se a si mesmos sem relutância por suas ovelhas, nunca cessando de visitá-las e consolá-las até serem chamadas a receber seu prêmio”.

Alguns padres, entretanto, fugiram da cidade. Mas a maioria do clero “fielmente cumpriu seu dever e tornou-se mártir”.

As casas religiosos estavam desoladas. Antes de a peste ser reconhecida pelo poder público, milhares de habitantes se aglomeravam para confessar-se, alguns por piedade e outros por medo de pegar a doença e morrer sem confissão. Alguns desses fiéis já deveriam estar infectados e podiam ter passado a doença aos padres. Provavelmente por essa razão, as ordens religiosas foram muito atingidas pela peste. Entre os Agostinianos, os Servitas, os Trinitários e os Carmelitas, quase nenhum membro escapou. “Alguns desses padres morreram, talvez, mais do cansaço do que da peste”, afirmou Bertrand.

Entretanto, as ordens que mais se destacaram no serviço aos doentes foram o Capuchinos, os Recoletos e os Jesuítas. As duas primeiras distribuíram-se em todas as paróquias, visitando os lugares mais infectados. Seu zelo acabava apenas quando morriam. Os Jesuítas, entretanto, destacaram-se ainda mais. Seu amor foi tanto, que apenas dois de 21 jesuítas na cidade não contraíram a doença.

Iam em todas as ruas, confessando todos que encontravam. Um desses padres jesuítas não apenas deu conforto espiritual, como assumiu o trabalho de comissário da Rua de L’Escale, a mais atingida pela peste. Lá estabeleceu uma cozinha em que irmãs preparavam comida para os doentes.

Entretanto, Bertrand salienta que o zelo dos padres teve origem e fundamento no zelo do Bispo de Marselha, Dom Henri François Xavier. Desde o primeiro dia que a peste apareceu na cidade, o Bispo determinou que fossem feitas orações, principalmente a São Roque, em todas as missas na diocese. Além disso, prometeu publicamente que sacrificaria sua saúde e mesmo sua vida para proteger suas ovelhas.

Logo no início da peste, visitou a Rua de L’Escalae para averiguar pessoalmente se se tratava da doença ou não. Estando certo de que se tratava da peste, reuniu todo o clero e pediu a eles que não abandonassem os fiéis no período duro que estaria por vir. “Ele animou o zelo e fortificou a coragem dos padres por discursos ternos e usando dos mais fortes motivos, que eram a glória de Deus e de sua santa religião, a salvação das almas, a honra deles próprios e, acima de tudo, as recompensas eternas guardadas para aqueles que exporem suas vidas pelos seus irmãos que sofrem”, escreveu Bertrand.

Seu zelo não se mostrou apenas nas palavras. Visitava todas as paróquias e distribuía confessores em todas a cidade, aparecendo em todos os lugares e consolando os fiéis. Combateu o preconceito que parte da população tinha com os médicos e, sempre que podia, elogiava-os. Visitava o único hospital da cidade todos os dias para, também, ouvir confissões e ministrar a Unção dos Enfermos. “O aumento da doença e o consequente aumento do perigo à sua vida não fizeram nenhuma diferença; ele ainda ia a todos os lugares, nada temendo. Ele pensava apenas nas necessidades daqueles submetidos ao seu cuidado”, elogiou Bertrand o seu Bispo.

Triste pelo número pequeno de padres na cidade, Dom Henri, então, tomou a decisão de ele mesmo, acompanhado por outro padre, percorrer toda a cidade para ministrar os sacramentos. Apesar de ter se exposto tanto, Dom Henri não foi vítima da peste. A população o apelidou como o “Bom Bispo”.

O exemplo de Marselha

A peste demorou mais de um ano para ter fim. Vitimou 40 mil pessoas. Depois de seu desaparecimento, toda a cidade foi desinfetada e a vida pôde voltar, aos poucos, ao normal.

A peste de Marselha é um exemplo de como uma demora no reconhecimento e no combate à doença pode ser desastrosa. As autoridades públicas não quiseram reconhecê-la prontamente por medo das consequências, apesar da opinião dos médicos à época.

Entretanto, o que sobressai na história é o bom exemplo do “Bom Bispo”, Dom Henri, que, como Cristo, deu a sua vida para cuidar espiritualmente dos doentes e de suas ovelhas. Dom Henri e os aproximadamente 300 padres que morreram na peste de Marselha testemunharam o zelo cristão, comum em todas as epidemias expostas nos outros textos da série, pelo cuidado do corpo e pela salvação das almas dos doentes.

FONTES: A Historical Relations of the Plague at Marseilles in the year of 1720 – Bertrand; Encyclopedia of Pestilence, Pandemics and Plagues, Greenwood Press

guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Veja todos os comentários